Christian Malheiros é um dos mais promissores atores brasileiros. Na verdade, este paulista nascido na periferia de Santos já é uma realidade no cenário nacional — e até internacional.
Aos 22 anos, ele traz no currículo os filmes Sócrates (2018), que lhe valeu uma indicação ao Independent Spirit Awards, dos Estados Unidos, e um prêmio no Festival de Mannheim-Heidelberg, na Alemanha, e 7 Prisioneiros (2021), que chegou a ser um dos cinco mais assistidos globalmente na Netflix, e a série Sintonia (2019-), que em breve terá sua terceira temporada. Em 2021, também pôde ser visto em dois episódios do seriado Sessão de Terapia, no papel do motoboy Tony, e fez uma participação em Colônia, do Canal Brasil.
Disponível em Telecine, Apple TV, Google Play e YouTube, Sócrates tem como protagonista um adolescente que, após a morte da mãe, precisa tentar sobreviver sozinho em São Paulo, enfrentando o luto, a miséria, a violência e o preconceito em relação a sua cor e a sua sexualidade. O diretor Alexandre Moratto ganhou o troféu Someone to Watch (alguém para ser observado) no Independent Spirit Awards.
Moratto e Malheiros repetem a parceria em 7 Prisioneiros, drama contundente sobre trabalho escravo e tráfico humano. O ator encarna Mateus, um dos quatro jovens que vão parar em um ferro-velho comandado pelo personagem de Rodrigo Santoro, um lugar com condições precárias e sem direitos trabalhistas.
Baseada na vida do diretor de criação, produtor e empresário KondZilla, Sintonia acompanha três jovens de uma favela fictícia de São Paulo, seus dramas e sonhos: Doni (MC Jottapê), que deseja ser um astro do funk; Nando (Christian Malheiros), que se envolve com o tráfico de drogas em busca de melhores condições para sua família; e Rita (Bruna Mascarenhas), que vê na igreja evangélica uma saída para os seus problemas.
Dias atrás, eu conversei por telefone com Malheiros. Confira os principais trechos do bate-papo:
Preparação e identificação com os personagens
"Sócrates, Nando e Mateus, todos esses personagens vêm de um lugar muito íntimo meu. Aquilo também sou eu, mas eu não sou só aquilo. A minha preparação é humanizar esses personagens. Fico me perguntando: eu faria isso? Eu não faria isso? Mas às vezes você pensa nisso sentado no conforto de sua casa. Como seria se você realmente estivesse naquele lugar? Gosto do dilema. A gente é dúvida, a gente é incerteza, anseios, defeitos."
A repercussão de "7 Prisioneiros"
"É uma realidade que existe, 40 milhões de pessoas no mundo estão em situação de trabalho análogo à escravidão. O assunto está debaixo do nosso nariz, na roupa que a gente veste, no alimento que a gente consome. Estamos sempre esbarrando no trabalho escravo. Acontece aqui em São Paulo, nos Estados Unidos, na Europa... Em diversas formas e diversos formatos. Esse tema precisa ser levantado, pois escancara o abismo social do nosso país. Para uma pessoa cair nessa, é porque está passando extrema dificuldade, não há oportunidades, o Estado é ausente. E o final incomoda porque existe uma cultura de final de novela, de salvador da pátria. A vida não é assim."
A terceira temporada de "Sintonia"
"Estou com bastante expectativa, mas não posso falar muito. É um projeto muito especial para mim, pelo papel de humanização do núcleo do crime. A gente começa a entender por que um menino talentoso e esperto está nessa situação. Sintonia tem essa força de trazer a periferia, desmistificar o que acontece na periferia. Lá, tem muito trabalhador, gente que sonha, religião convivendo com o funk. Tem crime? Tem. Mas ali estamos falando principalmente de ausência do Estado."
O descaso com a cultura no Brasil
"Não tem compromisso nenhum do Estado, das empresas e da sociedade. Esses agentes não entenderam a importância da cultura, que gera receita, gera turismo, gera identificação. Os Estados Unidos, por exemplo, conseguiram exportar o american way of life. Aqui no Brasil, cultura não é prioridade do governo, há poucas políticas públicas. Talvez por que a partir do momento em que você sabe quem é, uma descoberta que a cultura proporciona, você passa a impor limites. E a sociedade não entende a importância da arte. Mesmo com a pandemia, em que muita gente sobreviveu psicologicamente recorrendo a filmes, séries, músicas, espetáculos online etc, mas não reconhece isso."
O racismo
"Hoje eu me encontro num lugar de privilégio e não sofro mais como antes. Mas ainda acontece. Na hora em que vão me dar um personagem. Quando chego num set e não tem nenhum profissional negro. Por que não há roteiristas negros, por que plataformas de streaming se posicionam contra o racismo mas não têm projetos concretos? Estamos num país que é majoritariamente preto. Demos bons passos, mas ainda falta muito. Falta entenderem que temos o domínio das nossas narrativas. E não falo de ceder lugar, ninguém precisa fazer um favor para a gente, mas de nos enxergarem."
O trabalho como ator (1)
"Eu fujo muito da coisa de 'vi na TV e queria ser ator' ou 'Minha mãe me levava ao teatro'. Eu não tinha isso. Era um aluno muito estudioso, e quando abriu uma oficina de teatro na escola, um programa federal, comecei a fazer, escondido da minha mãe. Quando terminou a oficina, comecei a sentir falta daquilo. Aí, fui fazendo cursos livres, até procurar uma formação. Foi tudo orgânico."
O trabalho como ator (2)
"Quando vou representar um personagem, bate aquela pergunta: será que dou conta? Será que sei fazer isso? Acho importante: se eu tô duvidando, é porque aquilo é grande. Respeito muito as histórias dos personagens. E nem vou quando não bate paixão. Alguém vai fazer melhor do que eu, porque alguém vai achar paixão naquilo."
A principal influência
"A pessoa em quem me espelho e com queria trabalhar junto é a minha mãe (Maria, 64 anos). É quem mais admiro. Tenho orgulho dela, que me ensinou carinho, ética, respeito, cuidado, a ser cidadão. Se eu pudesse, faria um projeto com ela. Sempre levo a mãe para ver o ensaio de uma peça. Se a mãe gostar, fico tranquilo, se não gostar, já fico preocupado! É uma nordestina de pouco estudo que veio para São Paulo e criou sozinha sete filhos (Malheiros é o caçula e o único que seguiu carreira artística). Se ela entender a mensagem, tenho a segurança de que estamos no caminho certo."
O futuro
"Ainda não temos data de estreia, mas já está pronta a minha primeira comédia, A Última Festa, de Matheus Souza (diretor de Me Sinto Bem com Você, lançado em 2021, e roteirista de Eduardo e Mônica, em cartaz a partir de 6 de janeiro de 2022). É um filme que fala sobre o período da adolescência, a passagem para o mundo adulto, as responsabilidades. Acho legal que o público vai poder me ver num outro registro, diferente de trabalhos mais pesados. E há alguns projetos em andamento, mas preciso manter sigilo. Posso dizer que tenho tido umas consultas do Exterior, mas priorizo o Brasil."