Algumas semanas atrás, estive na Expo Favela, uma feira de negócios, cujos expositores são empreendedores e startups da favela. O objetivo da feira é dar visibilidade a estas iniciativas e, assim, promover palco para encontro com investidores que acelerem empreendimentos e gerem negócios a partir das oportunidades que nascem nos eventos.
Conversando com uma das donas de estande nesse evento, me deparei com a seguinte frase em uma gravura de dois meninos negros sorrindo, que ela tinha em exposição:
"Eu sou a continuação de um sonho".
Essa frase ecoou em mim de uma forma muito profunda, afinal eu estava em um evento de lideranças, empreendedorismo negro e junto de meus pais. Quando se é uma criança negra, em um lar que honra a ancestralidade e, ao mesmo tempo, entende o dano que o racismo causa nas pessoas, existe uma série de orientações as quais ela deve seguir para conseguir viver a infância o mais tranquilamente possível.
Na maioria das vezes, mesmo com as orientações, a criança passa por alguma situação desconfortável, por vezes violenta e já entende desde cedo que isso vai acompanhá-la pelo resto da vida.
Quando se é negro no Brasil, carrega-se consigo muitas coisas boas e ruins — traumas, cicatrizes, mágoas, planos; objetivos e principalmente, sonhos. Todas as crianças negras são a continuação do sonho de alguém, aliás, cada nova geração de pessoas negras que precede a anterior é a continuação de um sonho.
Um sonho que começou lá atrás, nos barcos que carregavam as centenas de milhares de africanos que atravessavam o Oceano Atlântico forçados dentro de navios. Um sonho que, na verdade, era um desejo de retorno aos gloriosos tempos em que negros eram a realeza, o sacerdócio e o exército. Sonho que a cada ano, década ou século que passa, mantém uma população esperançosa de que as coisas vão melhorar.
Eu sou a continuação de um sonho. De um sonho que meus pais e ancestrais tiveram ao perceberem que o único caminho para eu mudar de vida seria através da educação, um sonho no qual eles queriam que eu fosse muito mais longe do que eles, que eu conquistasse tudo que eu quisesse e não fosse impedido pela minha cor da pele. Nesse sonho, eles fariam de tudo para que eu vivesse os meus próprios sonhos sem me ter nada negado, mas que, ao mesmo tempo, o sonho deles vivesse através de mim e do caminho que eu escolhesse.
Curioso pensar, já que estamos falando de sonhos, que uma das frases mais icônicas da história seja de um ativista do movimento negro e se traduza para “Eu tenho um sonho”. A nossa ancestralidade nos conecta através do tempo e da história, corre no sangue das nossas veias e se perpetua através dos nossos genes.
Aliás, isso é mais uma coisa que a criança negra carrega. A ancestralidade nos dá forças nos momentos difíceis, serve de escudo e espada para que nos protejamos e cortemos todo o mal que nos aflige. É através dela que conseguimos nos manter esperançosos e nutrir uma nova geração, para que ela viva o que sonhamos e sonhe o que quiser para as próximas.