Com poucas horas de diferença, dois crimes cruéis abalaram o Rio Grande do Sul e só não tiveram maior repercussão nacional porque as vítimas são duas meninas pobres, uma de sete e outra de nove anos, uma em Novo Hamburgo e a outra em Guaíba. As mães têm praticamente a mesma idade (31 e 30 anos) e estão presas como suspeitas do assassinato. Nessa hora, é de se perguntar por onde andava o Conselho Tutelar, que no caso de Guaíba não protegeu uma criança que dormia dentro de um carro abandonado e que era sabidamente vítimas de maus-tratos.
A menina de Guaíba, Kerollyn Souza Ferreira, foi encontrada morta dentro de um contêiner de lixo (a perícia ainda não determinou a causa). A mãe, Carla Carolina Abreu Souza, foi presa temporariamente e está sendo investigada por maus-tratos. A menina de Novo Hamburgo, Ana Pilar Cabrera, foi morta a facadas e a mãe acabou presa em flagrante. Muito mais não se sabe porque a polícia, vejam só, fez voto de silêncio em protesto pelo não atendimento de reivindicações corporativas.
Nos dois casos, eram duas crianças que deveriam estar na escola. Tinham mais uma coisa em comum: estavam sendo criadas longe dos pais, porque na separação as mães ficaram no Rio Grande do Sul e os pais foram tocar a vida em outro lugar.
Ana Pilar tinha parentes que nunca desconfiaram da violência da mãe. Kerollyn era conhecida na Cohab Santa Rita, em Guaíba como uma menina sapeca, vaidosa, simpática e afetuosa, que levava e buscava o irmãozinho na escola, como se aos nove anos fosse a adulta da família. Na véspera de morrer, esteve numa escola buscando doações de alimentos e roupas.
Depois da tragédia, soube-se que a menina de Guaíba vivia o inferno da negligência e dos maus-tratos. Testemunhas disseram à Polícia que ela e os irmãos passavam fome, que a mãe filmava a criança dizendo que ela era “endiabrada”.
— Na verdade, era uma criança de nove anos que queria brincar e vivia sem atenção nenhuma — descreveu o chefe da Polícia Civil, delegado Fernando Sodré.
Maikon Correia, que é pai de outra filha da mulher, afirma que procurou o Conselho Tutelar diversas vezes para relatar a situação vivida pelas crianças. O vigilante diz que a menina costumava pedir comida na casa de vizinhos:
— Era uma situação de abandono. Ela sempre deixava as crianças sozinhas. A guriazinha passava fome, com os outros irmãos dela dentro de casa, quando a mãe saía. Tentei de várias formas ajudar. O Conselho Tutelar fechou os olhos. Isso que me dói. Essa querida criança podia estar com vida, se algum órgão público tivesse prestado atenção. Tudo era iminente. O que estava acontecendo com a vida da Kerollyn, era iminente. Todo mundo estava sabendo.
O pai de Kerollyn, Matheus Ferreira, que vive em Santa Catarina, relatou ao g1 RS ter procurado o Conselho Tutelar ao menos seis vezes. Em julho de 2022, registrou ocorrência contra a mãe da menina, por ameaça. No relato, ele afirmava estranhar o comportamento da filha. “Nada vai trazer a minha filha de volta. Isso é revoltante. Por diversas vezes eu tentei”, escreveu em relato na internet.
O que fez o Conselho Tutelar com as denúncias? Pela resposta da conselheira tutelar Ieda Lucas, tratou o assunto de forma burocrática. Ieda confirmou que a família vinha sendo acompanhada, mas negou que o Conselho Tutelar tenha se omitido de realizar atendimentos no caso.
— Todas as denúncias que foram feitas dessa família foram atendidas. A gente luta para que a criança permaneça no seu lar. A gente estava acompanhando, sim. Não havia risco de vida todas as vezes que fomos — disse.
Se o Conselho Tutelar não foi omisso, é de se perguntar para que serve sua intervenção. Dizer que a criança estava “assistida” e que a morte foi “uma fatalidade” é lavar as mãos.
ALIÁS
Os assassinatos de Kerollyn e Ana Pilar remetem para outro tema que em geral frequenta os discursos de campanha, mas não chega à vida real: o planejamento familiar, com orientações para homens e mulheres sobre como evitar a gravidez indesejada.