Dois documentos de teor semelhante circulam no mundo virtual com a assinatura de milhares de pessoas representativas do que se poderia chamar de PIB econômico e intelectual do Brasil. Na essência, defendem os mesmos valores: a democracia, o sistema eleitoral e as instituições da República. Até por isso, parte dos signatários aparece nos dois documentos. São empresários, banqueiros, ex-ministros, ex-presidentes do Banco Central, profissionais liberais, artistas e políticos.
O manifesto gestado pelos empresários e que já tem mais de 6 mil assinaturas é um primor de concisão. Em 14 linhas, diz tudo o que precisa ser dito, mas o recado mais contundente está no parágrafo final:
“O princípio chave de uma democracia saudável é a realização de eleições e a aceitação de seus resultados por todos os envolvidos. A Justiça Eleitoral brasileira é uma das mais modernas e respeitadas do mundo. Confiamos nela e no atual sistema de votação eletrônico. A sociedade brasileira é garantidora da Constituição e não aceitará aventuras autoritárias.”
O outro é mais longo. Com 64 linhas, a Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito nasceu na Faculdade de Direito da USP, inspirado na Carta à Nação de 1977, contra a ditadura militar. Ganhou a adesão de milhares de pessoas e seguirá recebendo assinaturas até o dia 11 de agosto, quando será lido no Largo São Francisco.
Ao se referir à campanha eleitoral que está para começar, o documento adverte:
“Ao invés de uma festa cívica, estamos passando por momento de imenso perigo para a normalidade democrática, risco às instituições da República e insinuações de desacato ao resultado das eleições”.
No trecho final, diz:
“No Brasil atual não há mais espaço para retrocessos autoritários. Ditadura e tortura pertencem ao passado. A solução dos imensos desafios da sociedade brasileira passa necessariamente pelo respeito ao resultado das eleições”.
Qualquer cidadão brasileiro que entenda o significado de democracia poderia emoldurar os dois manifestos e pendurar no escritório ou na sala de estar. Não há, em nenhum deles, nome de autoridade ou candidato. Mesmo assim, o ministro chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, vestiu a carapuça e entendeu o manifesto como sendo “contra” o presidente Jair Bolsonaro. No afã de agradar ao chefe, chegou a atribuir o manifesto a banqueiros incomodados por terem perdido R$ 40 bilhões (sic) com adoção do pix.
Sim, o destinatário oculto dos manifestos é Bolsonaro, porque só ele vem atentando contra as instituições, só ele vem ameaçando não reconhecer o resultado da eleição, só ele vem atacando o sistema eleitoral. Mas não é “contra” o presidente, que vive repetindo o mantra de “jogar dentro das quatro linhas da Constituição”.
Se o PIB econômico, intelectual e cultural está se identificando com esses manifestos é porque percebeu que está no ar uma ameaça à democracia. Essa “elite” sabe muito bem que todos perdem quando se tem uma ruptura institucional, uma convulsão social ou uma guerra civil. Quem haverá de querer investir no Brasil se houver risco de um golpe de Estado, disfarçado ou explícito.
Engana-se quem acha que um golpe (ou coisa parecida) teria hoje o apoio que teve dos empresários ou do governo dos Estados Unidos em 1964, auge da Guerra Fria. Os tempos são outros e o comunismo só é uma ameaça nas cabeças lunáticas que permanecem paradas no século 20, antes da queda do Muro de Berlim e do esfacelamento das repúblicas socialistas soviéticas.
Ditaduras de esquerda e de direita não servem ao propósito de reduzir as desigualdades e fomentar o crescimento sustentável. São aberrações que se sustentam na força, na tentativa de cooptar o Judiciário e o Legislativo, aniquilar a imprensa e evitar o exercício da liberdade de expressão, de credo e de voto.
Confira a íntegra dos dois manifestos:
“Eleições serão respeitadas
O Brasil enfrenta uma crise sanitária, social e econômica de grandes proporções. Milhares de brasileiros perderam suas vidas para a pandemia e milhões perderam seus empregos.
Apesar do momento difícil, acreditamos no Brasil. Nossos mais de 200 milhões de habitantes têm sonhos, aspirações e capacidades para transformar nossa sociedade e construir um futuro mais próspero e justo.
Esse futuro só será possível com base na estabilidade democrática. O princípio chave de uma democracia saudável é a realização de eleições e a aceitação de seus resultados por todos os envolvidos. A Justiça Eleitoral brasileira é uma das mais modernas e respeitadas do mundo. Confiamos nela e no atual sistema de votação eletrônico. A sociedade brasileira é garantidora da Constituição e não aceitará aventuras autoritárias.”
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“Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito
Em agosto de 1977, em meio às comemorações do sesquicentenário de fundação dos cursos jurídicos no país, o professor Goffredo da Silva Telles Junior, mestre de todos nós, no território livre do Largo de São Francisco, leu a Carta aos Brasileiros, na qual denunciava a ilegitimidade do então governo militar e o estado de exceção em que vivíamos. Conclamava também o restabelecimento do estado de direito e a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte.
A semente plantada rendeu frutos. O Brasil superou a ditadura militar. A Assembleia Nacional Constituinte resgatou a legitimidade de nossas instituições, restabelecendo o Estado Democrático de Direito com a prevalência do respeito aos direitos fundamentais.
Temos os poderes da República, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, todos independentes, autônomos e com o compromisso de respeitar e zelar pela observância do pacto maior, a Constituição Federal.
Sob o manto da Constituição Federal de 1988, prestes a completar seu 34º aniversário, passamos por eleições livres e periódicas, nas quais o debate político sobre os projetos para o país sempre foi democrático, cabendo a decisão final à soberania popular.
A lição de Goffredo está estampada em nossa Constituição: “ Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição ”.
Nossas eleições com o processo eletrônico de apuração têm servido de exemplo no mundo. Tivemos várias alternâncias de poder com respeito aos resultados das urnas e transição republicana de governo. As urnas eletrônicas revelaram-se seguras e confiáveis, assim como a Justiça Eleitoral.
Nossa democracia cresceu e amadureceu, mas muito ainda há de ser feito. Vivemos em um país de profundas desigualdades sociais, com carências em serviços públicos essenciais, como saúde, educação, habitação e segurança pública. Temos muito a caminhar no desenvolvimento das nossas potencialidades econômicas de forma sustentável. O Estado apresenta-se ineficiente diante dos seus inúmeros desafios. Pleitos por maior respeito e igualdade de condições em matéria de raça, gênero e orientação sexual ainda estão longe de ser atendidos com a devida plenitude.
Nos próximos dias, em meio a estes desafios, teremos o início da campanha eleitoral para a renovação dos mandatos dos legislativos e executivos estaduais e federais. Neste momento, deveríamos ter o ápice da democracia com a disputa entre os vários projetos políticos visando convencer o eleitorado da melhor proposta para os rumos do país nos próximos anos.
Ao invés de uma festa cívica, estamos passando por momento de imenso perigo para a normalidade democrática, risco às instituições da República e insinuações de desacato ao resultado das eleições.
Ataques infundados e desacompanhados de provas questionam a lisura do processo eleitoral e o Estado Democrático de Direito tão duramente conquistado pela sociedade brasileira. São intoleráveis as ameaças aos demais poderes e setores da sociedade civil e a incitação à violência e à ruptura da ordem constitucional.
Assistimos recentemente a desvarios autoritários que puseram em risco a secular democracia norte-americana. Lá as tentativas de desestabilizar a democracia e a confiança do povo na lisura das eleições não tiveram êxito, aqui também não terão.
Nossa consciência cívica é muito maior do que imaginam os adversários da democracia. Sabemos deixar ao lado divergências menores em prol de algo muito maior, a defesa da ordem democrática.
Imbuídos do espírito cívico que lastreou a Carta aos Brasileiros de 1977 e reunidos no mesmo território livre do Largo de São Francisco, independentemente da preferência eleitoral ou partidária de cada um, clamamos às brasileiras e aos brasileiros a ficarem alertas na defesa da democracia e do respeito ao resultado das eleições.
No Brasil atual não há mais espaço para retrocessos autoritários. Ditadura e tortura pertencem ao passado. A solução dos imensos desafios da sociedade brasileira passa necessariamente pelo respeito ao resultado das eleições.
Em vigília cívica contra as tentativas de rupturas, bradamos de forma uníssona: Estado Democrático de Direito Sempre.”