Em dezembro de 2018, quando vieram a público os depósitos de R$ 24 mil feitos por Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama Michele Bolsonaro, o presidente Jair Bolsonaro deu uma explicação que só parava em pé para seus seguidores. Disse que o dinheiro era parte de um empréstimo feito a Queiroz (sem registro) e que o depósito fora feito na conta de Michelle porque ele não tinha tempo de ir ao banco no Rio de Janeiro.
A justificativa não fazia sentido, mas, como o foco era o senador Flávio Bolsonaro, acusado de ficar com parte dos salários de seus assessores na Assembleia do Rio de Janeiro, da história mirabolante restou apenas o apelido “Micheque”, nas redes sociais.
Passados 20 meses, a revista Crusoé teve acesso à quebra do sigilo bancário de Queiroz e descobriu que os depósitos somam R$ 72 mil entre 2011 e 2018. O relatório do Coaf só mostrava a movimentação de 2017 e 2018.
À época, Bolsonaro até debochou dos R$ 24 mil. Disse que apareceriam outros depósitos, porque o empréstimo feito a Queiroz era de R$ 40 mil. Agora, os extratos revelados pela revista mostram que a conta de Michelle recebeu pelo menos 21 cheques de Queiroz. Pelo valor dos depósitos, tem cheiro de mesada: foram três cheques de R$ 3 mil em 2011, seis do mesmo valor em 2012 e mais três de R$ 3 mil em 2013. Em 2016, foram mais nove depósitos, totalizando R$ 36 mil.
Além das transferências feitas por Queiroz à primeira-dama, a Folha de S.Paulo revelou que a mulher do ex-assessor, Márcia Aguiar, depositou pelo menos quatro cheques na conta de Michelle em 2011, no valor total de R$ 11 mil.
A versão do empréstimo não para em pé porque a movimentação financeira de Queiroz no período investigado foi quase cinco vezes superior ao que recebeu de salário e aposentadoria. De 2007 a 2018, o ex-assessor recebeu em sua conta R$ 6,2 milhões. Desse total, só R$ 1,6 milhão eram referentes ao salário de assessor e à remuneração como PM da reserva. Queiroz e a mulher estão em prisão domiciliar.
Michelle não é investigada no esquema da rachadinha, mas os depósitos lembram outro episódio da história do Brasil envolvendo uma primeira-dama. Trata-se de Rosane Collor, que teve contas pagas por Paulo César Farias, o PC, ex-tesoureiro de campanha do então marido, Fernando Collor. Veio a público que até roupas íntimas de Rosane foram pagas por PC.
As movimentações atípicas atingem um dos pilares do discurso de moralidade da família Bolsonaro, incompatível com as zonas de sombra que vão do emprego de funcionários fantasmas à evolução patrimonial incompatível com as receitas conhecidas, passando pela estranho hábito de pagar contas de valor elevado com dinheiro vivo.
Bolsonaro deve explicações ao país sobre os depósitos, já que foi ele quem apresentou a outra versão sobre os cheques repassados por Queiroz a Michelle. Os depósitos não são fato isolado. A investigação já descobriu que Queiroz também pagou contas pessoais da família de Flávio, incluindo plano de saúde e mensalidade da escola das filhas.