Ex-presidente da PDVSA (2004-2014) e ex-ministro do Petróleo (2002-2014), Rafael Ramírez era um dos homens de confiança de Hugo Chávez, mas rompeu no fim de 2017 com o sucessor, Nicolás Maduro.
De seu exílio em Roma, ele conversou coma coluna sobre a atual crise na Venezuela.
Como avalia a situação em seu país?
Muito séria. Ocorreu uma irregularidade, uma fraude imensa, um processo eleitoral violado desde o início, cheio de armadilhas. Estou exilado na Itália desde 2017, porque, denunciei toda a deriva autoritária e o desastre do país. O governo realiza eleições, porque é obrigado pela Constituição, mas enche o caminho de obstáculos e irregularidades. Em 2022, com o apoio de organizações de esquerda, lancei a minha candidatura como opção chavista contra Maduro e imediatamente não só me desqualificaram como me acusaram de uma série de coisas. Prenderam meu irmão, Fidel, um médico que nunca se envolveu com política. Ele está preso há dois anos nas masmorras da Diretoria de Contra-espionagem. Ou seja, esse é um processo cheio de violência, de manobras políticas, que impediram a observação internacional e que nós, que estamos no Exterior, votássemos. Essas eleições, mais do que o apoio ao candidato X ou Y, são um plebiscito. As pessoas se manifestaram contra Maduro, e houve manifestações massivas, apesar de todos os obstáculos.
O senhor considera a Venezuela uma ditadura?
Sem dúvida. Antes, pelo menos, tinham respaldo, pouca legitimidade que lhes era dada pelo processo eleitoral. Em 2018, Maduro também realizou eleições, mas a oposição não se apresentou. É como se um time de futebol perdesse por V.O.. O sistema eleitoral venezuelano é automatizado. Ou seja, é um sistema eletrônico que funciona com máquinas que transmitem diretamente os resultados para um centro de apuração, onde ninguém intervém. Porém, a única garantia para auditá-lo é o fato de cada máquina ao final da eleição, gerar um registro, um recibo. Cada testemunha (da eleição) das diferentes partes (em disputa) tem o direito, por lei, de ter esse registo, porque é uma prova. No dia das eleições, às 16h, as seções eleitorais começaram a ser fechadas e retirar as testemunhas das seções, sem que as atas lhes fossem entregues. Agiram com violência, por meio de grupos armados. A CNE (Comissão Nacinal Eleitoral) fez o primeiro boletim sem que as pessoas pudessem verificar o resultado. É por isso que o Centro Carter (organização independente) afirma que essa não é uma eleição democrática ou transparente. Apesar de toda aquela irregularidade, Maduro se proclamou vencedor. O alto comando militar apoiou Maduro, ou seja, um golpe de Estado.
Há diferenças em relação a outras eleições?
Diferentemente de eventos anteriores, como em 2014 e 2017, dessa vez são os pobres, as pessoas que moram nas favelas que estão nas ruas. Muita gente desceu (dos morros) para manifestar seu repúdio. O governo está reprimindo, prender mais gente. Os grupos paramilitares agem à vontade, há toques de recolher em áreas do oeste de Caracas, e tentam intimidar as pessoas. O futuro é incerto, mas o que está claro é que este é um governo ilegítimo, que não só está isolado internacionalmente, como também ninguém o quer na Venezuela. Foi expresso um repúdio gigantesco à figura de Maduro. Sempre fiz questão de dizer que o governo Maduro não é chavista, nem é de esquerda. É de direita, um governo cuja primeira coisa a fazer foi perseguir ex-ministros de Chávez. Todas as políticas de Chávez foram revogadas: petrolífera, econômica e social. É por isso que o país entrou em uma crise terrível.
Por que considera o regime de direita?
O controle da economia foi entregue aos setores privados aliados. Ele entregou o controle do petróleo às empresas petrolíferas transnacionais, americanas, chinesas e russas, e atingiu os trabalhadores, retirando-lhes suas conquistas. Hoje o salário mínimo é o equivalente a US$ 3,6 mensais. Maduro dolarizou a economia em 2018 e provocaram a megadesvalorização do bolívar (moeda venezuelana). Os salários são pagos em bolívar, enquanto toda a economia está dolarizada. É por isso que as pessoas não conseguem se sustentar na Venezuela. Isso nunca ocorreu com Chávez. Pelo contrário, no governo do presidente Chávez tínhamos uma economia forte, apoiada na produção de petróleo. Quando eu estava lá (no governo), produzíamos 3 milhões de barris por dia, hoje produzimos 800 mil. O governo sempre diz que é por causa das sanções. Mas é estranho. Estive em Cuba, onde há bloqueio (econômico), e não entra nada. Na Venezuela não, há carros de luxo. Houve, sim, amento da desigualdade: surgiu uma nova classe econômica, a partir de ex-soldados, ex-funcionários do governo, que são hoje os donos do país.
Chávez não era ditador?
Não. Passei 12 anos como ministro do Petróleo de Chávez, o que significa ser o braço direito do presidente. Com Maduro, só fiquei um ano e meio. Mais tarde, ele me mandou para a ONU e me tirou do setor petrolífero. Chávez nunca foi contra a Constituição. Nem nos piores momentos. Sempre apostamos na política.Chávez nunca impediu as pessoas de se expressarem, porque disse que o país tinha de reconstituir um quadro institucional baseado na participação democrática. No final, quando perdemos a reforma constitucional, Chávez aceitou a derrota e sempre insistiu comigo que tínhamos que aprofundar o debate político e a política. Ele não tinha nada a esconder e tinha muito a oferecer: o país teve muitos avanços sociais.
Que diferenças vê entre Chávez e Maduro?
Maduro é um ditador e não tem nada a ver com Chávez. Também lhe digo: Chávez era um bom homem, apegado à lei. Nunca o vi atacar ninguém. Maduro age com crueldade, inclusive contra os chavistas e contra mim. Maduro adotou a estratégia de corromper o alto comando. Deram a eles a gestão da economia do país, a PDVSA (estatal de petróleo), as empresas básicas, todos os grandes setores econômicos do país.
Maduro age com crueldade, inclusive contra os chavistas e contra mim.
Qual o real apoio dos militares a Maduro?
Majores, capitães, tenentes são gente do povo. O nosso exército é muito popular. Não são elites militares, são pessoas comuns. Há muito descontentamento, e é por isso que Maduro tem feito perseguições dentro do exército, e usa apenas a Guarda Nacional e os coletivos para reprimir o povo.
Como você acha que pode haver uma transição?
Maduro deve ser retirado. Ele criou uma estrutura que impede uma solução democrática e constitucional. É como se fosse preciso derrotar uma ditadura para só depois se conseguir uma transição. Sempre propus a necessidade de um conselho de administração, de um acordo nacional. A oposição erra quando acredita que pode governar sem o chavismo. Não estou falando de madurismo. Estou falando do chavismo, das ideias de Chávez. A oposição não pode sustentar o país destruindo a Constituição. Ou seja, para governar na Venezuela é preciso ter as bases chavistas e os postulados fundamentais, que foram produto de uma transformação política no país a partir de 1999, com a nova Constituição. Quem for governar o país tem de fazê-lo equilibrando esses fatores. Nas forças armadas, teme-se o que María Corina Machado possa fazer (caso chegue ao poder). Há anos, ela tem um discurso de intolerância contra os chavistas e contra o exército. Então, é claro, por uma simples questão de sobrevivência, os oficiais permaneçam ao lado de Maduro.
Lula é um democrata e conhece muito bem nosso país. Penso que suas críticas foram muito corretas quando se opôs ao que Maduro disse que seria um banho de sangue
Qual o papel do governo brasileiro?
Muito importante. Afirmei, quando Lula foi eleito, que ele era o interlocutor natural da América Latina com a Venezuela. Porque Lula é um democrata e conhece muito bem nosso país. Penso que suas críticas foram muito corretas quando se opôs ao que Maduro disse que seria um banho de sangue. A posição do governo brasileiro de esperar, exigindo que os votos sejam verificados, é a mais prudente. Acredito que o Brasil terá um papel extraordinário para evitar um banho de sangue. O Brasil não está interessado num país em guerra. Lula não pode ficar indiferente ao que acontece na região, muito menos na Venezuela.
O governo Maduro o acusa de corrupção, enquanto esteve no governo. O que tem a dizer?
O governo judicializou a política. Usaram o Ministério Público e o Poder Judiciário para perseguir inimigos políticos. Tudo isso começou depois que pedi demissão. Antes de renunciar, eu era um herói para Maduro. Depois que fiz minhas críticas, eles me acusaram de qualquer coisa. Não têm provas de nada, nem sequer mostraram um documento. Não tenho conflitos em nenhum lugar do mundo. Na verdade, ando pelo mundo sem problemas. O único problema que tenho, tal qual milhões de venezuelanos, é o sistema judicial de Maduro. Se alguém decidir que você tem que ir para a cadeia porque se sente desconfortável, eles irão acusá-lo de qualquer coisa e colocá-lo na cadeia.
Pensa em se candidatar a algum cargo público, à presidência, por exemplo?
Estive ao lado direito de Chávez durante 10 anos. Sinto-me obrigado a ajudar a recuperar o controle do meu país. Sei fazer isso, tenho muito apoio do setor social chavista e acredito que assim que todos tivermos garantias jurídicas e políticas, devemos voltar ao país. Não vou desistir da minha terra natal nem dos nossos projetos. Não sonho com a presidência. Sonho em reconstruir o país. Existe a possibilidade de que desempenhe um papel importante. Estou disposto a servir o meu povo. Eu sei como fazer isso. Eu vi tudo o que destruíram. Sei como pode ser consertado.