A jornalista gaúcha Iara Lemos, radicada há 15 anos em Brasília, tem um extenso trabalho de pesquisa e no jornalismo em defesa dos direitos humanos. Formada na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e especialista em História Política, a profissional assina dois capítulos do livro "Crimes contra Mulheres" (editora Mizono), no qual várias autoras compartilham conhecimento teórico e prático sobre violências doméstica, psicológica, encarceramento feminino, pedidas protetivas de urgência e transfobia.
Na obra, ela escreve sobre violações em ambientes religiosos e assina com a também jornalista Giuliana Morrone um segundo capítulo sobre violência contra mulheres no trabalho. Iara é também autora de "Cruz Haitiana: Como a Igreja Católica usou de seu poder para esconder religiosos pedófilos no Haiti".
À coluna, ela contou um pouco sobre o novo trabalho.
Como surgiu o convite para escrever no livro?
Faço esse trabalho voltado para questão de defesa dos direitos das mulheres. Mesmo que, no Haiti, eu tenha contado as violações cometidas por religiosos e mesmo que a maior parte das violências envolvessem meninos, há muitos casos de meninas - inclusive que entrevistei, violentada por um padre da paróquia, que era o diretor da escola dela, engravidou. Ao longo desses últimos anos, eu e o Cyrus Sibert, jornalista que mora exilado nos Estados Unidos, depois de ameaças que sofreu no Haiti, ficamos mapeando de tempos em tempos para saber o paradeiro desse padre. Mas não conseguimos localizá-lo até agora devido à engrenagem que a Igreja Católica ainda movimenta para manter os violadores fora dos holofotes.
Tudo começou a partir desse trabalho?
Acabou sendo uma casualidade, eu estava com umas amigas em São Paulo, e a gente encontrou Camilla Hage, que é delegada responsável pela implementação das delegacias da mulher. Conversamos com ela, com a Giuliana Morrone. Camilla contou que tinha um trabalho junto com uma editora de buscar mulheres envolvidas com causas de direitos humanos nessa parte especificamente de mulheres. Passou alguns dias, e ela nos fez a proposta de participar dessa coleção. São três livros, e o último é Crime contra as Mulheres. Para mim, seria escrever sobre a violação contra as mulheres nos ambientes religiosos e outro capítulo, que assino com Juliana, sobre violência contra mulheres em ambientes profissionais.
Como foi investigar as violações de padres no Haiti?
Foram mais de 10 anos pesquisando documentos, tanto no Haiti quanto em outros países. Tudo isso partiu por conta de um grupo de mulheres muito corajosas: as freiras que me hospedaram na primeira vez que eu estive no país que estavam muito indignadas com tudo que acontecia no meio delas. Elas pediram apoio, fizeram uma espécie de apelo para que algo fosse feito, porque não aceitavam que o Haiti e as suas crianças fossem alvos de violação de quem deveria protegê-los, no caso os religiosos que eram colocados para lá. Elas foram fundamentais. Isso mostra a força quando a gente se une como mulheres. Um grupo de 111 crianças foram violentadas por um único religioso, no Haiti, o Douglas Perlitz, que inclusive está preso nos Estados Unidos. Foi condenado e tive a oportunidade de acompanhar o julgamento. Foi a primeira vez na história da Igreja Católica que foi paga uma indenização a um grupo de jovens e crianças violentadas por religiosos. Foi a primeira vez na história que a Igreja Católica admitiu esse crime.
Como esse caso revelava algo maior?
Desenredamos uma teia gigantesca que ia desde o núncio da Igreja Católica para o Haiti, diáconos, padres, bispos. Quando as pessoas às vezes dizem: "Ah, mas é mais um caso de violência sexual envolvendo religiosos". Eu digo: não é mais um caso. O Haiti é usado constantemente na história da Igreja para a colocação de religiosos pedófilos de vários lugares do mundo. Quem vai buscar um padre no Haiti? Há padres poloneses, ingleses, americanos, canadenses... E eu provo isso com documentos, com processos judiciais de todos esses países que eu percorri ao longo desses anos.
E como você aborda a violência contra mulheres no ambiente de trabalho?
É muito mais presente do que a gente possa imaginar. Não acredito que haja alguma mulher que não tenha passado por algum tipo de violência. No capítulo, Giuliana conta quando começou a perceber algumas violências no ambiente profissional. Também narro situações pelas quais passei. Nem sempre a gente consegue identificar. As mulheres têm uma capacidade gigantesca de unir forças para mudar situações na sociedade, mas, ao mesmo tempo, também somos reprimidas por esse contexto histórico-social do patriarcado que faz com que muitas vezes não acreditemos em nós mesmas. Com isso, instituímos e fortalecemos uma cultura machista dentro dos nossos trabalhos profissionais. Giuliana e eu falamos especificamente de espaços de redação, espaços que nós convivemos. Muitas vezes, você precisava estar com o cabelo liso. Trabalhei em televisão, e a primeira coisa que eu tive de fazer quando comecei foi passar quase uma madrugada no salão escolhido naquela época porque eu tinha de alisar o cabelo. Meu cabelo é cacheado, mas eu tinha de estar na TV com o cabelo liso. Hoje é uma coisa pela qual não precisamos mais passar. O texto serve como uma alerta para que outras mulheres saibam identificar formas que nos reprimem.
O Haiti é usado constantemente na história da Igreja para a colocação de religiosos pedófilos de vários lugares do mundo.
Com diferentes autoras, vocês abordam muitos aspectos de violência: física, psicológica, em ambientes religiosos, profissionais, domésticos...
O livro reúne jornalistas, juízas, promotoras, delegadas de polícia, ministras de cortes superiores. Todas falam de situações em que nós, mulheres, não somos apenas as vítimas, mas também de forma a fazermos com que não sejamos participantes de determinadas situações de crimes que nos prejudica. Queremos mobilizar mulheres Brasil afora. Faço mestrado em políticas públicas para mulheres, e, ainda assim, às vezes demoro para compreender o que está acontecendo. Passei recentemente por um processo em que demorei mais de um ano para enxergar determinadas violências que eu estava passando, até a ponto de dizerem para mim: "Iara, acorda, você está sendo violentada psicologicamente, o que está acontecendo com você é uma violência, e você não pode deixar isso se perpetuar, rompa com isso". É muito difícil, principalmente quando ela ocorre dentro da sua casa. Às vezes, a mulher não se dá conta de que está sofrendo um abuso, de que há violência por trás. Pelo machismo estrutural, por estar muito impregnado na sociedade, e a própria pessoa não se dá conta.
Você integra o Colegiado de Inteligência Artificial da Organização para a Cooperaão e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Como o debate sobre a violência contra a mulher aparece no campo dessa nova tecnologia?
Terminamos recentemente uma revisão dos processos de inteligência artificial na União Europeia, e ele está sendo utilizado de baliza, inclusive no Brasil, para essa regulamentação de que necessitamos. Temos vários aspectos e precisamos de leis diferenciadas para cada um deles. Por exemplo, como as delegacias da mulher vão fazer um sistema de cadastramento facial, biometria, para os condenados por Lei Maria da Penha? Isso facilitaria todo o acesso digitalizado nas delegacias do país inteiro e faz com que um condenado por Lei Maria da Penha em Porto Alegre não venha a cometer crimes aqui em Brasília, por exemplo, sem que demore a sua identificação. Isso é inteligência artificial. Poderíamos implantar esse tipo de sistema. É um serviço caro, mas nada impede que sejam feitas parcerias público-privadas. A violência contra a mulher às vezes é subjetiva. Você visualiza a violência física, aquela que a mulher apanha, mas pode ser também psicológica, financeira, patrimonial, isso é dificílimo de você conseguir enxergar. Espero que, em breve, a inteligência artificial possa ser utilizada para a redução desses casos. Se tivéssemos um sistema que utilizasse da tecnologia e a inteligência artificial para isso, com certeza o Brasil teria um ganho imenso nos seus processos de legislação e de punição e aplicabilidade das leis. Só que, para isso, a gente precisa, em primeiro lugar, ter uma regulamentação de inteligência artificial, o que o Congresso ainda não fez. E, como a tecnologia avança de uma forma muito rápida, é preciso que se tenha investimento em ciência, em tecnologia e em educação para que o Brasil não fique a mercê de tecnologias que já são implementadas em outros países, como no caso da Europa, e o reconhecimento facial é um deles.