Poucos dias depois do aniversário de 60 anos do golpe militar, será lançado no Rio de Janeiro o filme "Brizola", documentário dirigido por Marco Abujamra. A obra, produzida pela Dona Rosa Filmes, participa do 29º Festival Internacional de Documentários "É tudo verdade".
Por meio da trajetória do ex-governador gaúcho, que liderou a campanha da Legalidade, o documentário provoca uma reflexão sobre a construção da classe política brasileira, de Getúlio Vargas até o início do século 21. Conforme o diretor, o filme apresenta Leonel Brizola "astuto, ambicioso, conciliador, mas acima de tudo, apaixonado por sua pátria e pelo povo brasileiro".
Abujamra dirigiu documentários como "Jards Macalé - Um Morcego na Porta Principal", "Mario Lago", "Paulo Autran-O Senhor dos Palcos" e Todas as Melodias- sobre a trajetória musical de Luis Melodia.
À coluna, ele antecipou detalhes sobre "Brizola", que, depois de seu percurso por festivais Nacionais e Internacionais, terá sua estreia no Canal Curta!, ainda sem data determinada.
Leia os principais trechos da conversa.
Como surgiu a ideia de fazer o documentário sobre Brizola?
Essa ideia começou em 2014. No meio de muitos tumultos políticos brasileiros, eu tinha uma vontade muito grande de abordar, politicamente, dentro do meu trabalho audiovisual, como poderíamos suscitar questões. Brizola foi o caminho mais interessante. Gosto de Brizola desde antes de eu poder votar. Em 1989, se eu pudesse ter votado, teria votado nele. Era uma pessoa pela qual sempre tive muita admiração. Achei que era uma figura importante para se discutir a política de hoje: muito atribulada, segmentada, dividida.
Como você pensou o roteiro?
Roteiro de documentário é uma coisa que vai se construindo ao longo da produção, porque você tem uma ideia, mas não sabe como as pessoas vão responder a suas perguntas nas entrevistas. Você tem alguma noção, um argumento, mas muita coisa vai mudando. Inclusive, mudou bastante. O roteiro tinha algumas peculiaridades que acabaram não se mostrando viáveis. O filme acabou contando uma história cronológica de Brizola, com uma comparação com os dias atuais.
Vocês vieram ao Rio Grande do Sul para gravar?
Não, porque o filme tem muitas imagens de arquivo e algumas entrevistas. É construído mais com o próprio Brizola contando a história dele.
Conseguiram muitas imagens do próprio Brizola falando?
Muitas. Ao longo do filme inteiro, há situações emblemáticas, importantes.
Brizola teve uma história no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro. Como aparecem, no filme, esses dois lugares?
O filme deixa muito claro o antes e o depois da volta dele do exílio. Começa, inclusive, com a volta de Brizola do exílio. Lembramos, lá trás, como foi a trajetória dele e alcançamos, de novo, a volta do exílio, que é quando ele começou a carreira política no Rio de Janeiro. Mas aparece a Legalidade, a relação dele com Getúlio Vargas, com Jango (João Goulart). Estão muito presentes ali, no sentido de contextualizar determinadas coisas que, por incrível que pareça, 60, 70 anos depois, vão se mostrando atuais, como acusações de "comunismo". Brizola era acusado de ser comunista, coisa que nunca foi. Mas era uma demonização de posturas que não se adequam a um status dominante, conservador. E é engraçado a gente ver isso recentemente voltar: as pessoas acusando outras de comunista, a maioria delas não sabendo nem o que é comunismo. Virou qualquer coisa que represente uma coisa ruim. É uma coisa que já aparecia lá trás: "Os comunistas estão chegando". É uma proposta de redução intelectual que a gente vive no Brasil há muitas e muitas décadas. São campanhas que se repetem. Então, mostrar esse panorama do qual o Brizola foi protagonista, inclusive até o golpe de 1964, entender isso em comparação aos dias de hoje, é curioso. Muito se repete.
Vocês pensaram em fazer o lançamento agora em função dos 60 anos do golpe?
Fazer cinema no Brasil, principalmente documentário, filmes de arte, implica ter um planejamento no qual você fica à mercê de uma série de fatores que foge de qualquer tipo de segurança. Tivemos o governo Jair Bolsonaro, que acabou com o audiovisual. A gente conseguiu verba para realizar o filme pouco antes da posse do Bolsonaro, em 2017. Ganhamos o edital, mas foram anos até que a verba fosse liberada. Então, você não tem como planejar isso. Teve os 60 anos do Brizola (da campanha da Legalidade), em 2022, que a gente não conseguiu lançar o filme. Teve esse acaso de o filme ser finalizado, ser exibido no Festival Tudo Verdade, que é muito importante, que nos dá muito prazer, uma honra participar. E casar com essa data nefasta, essa comemoração nefasta do golpe que o Brasil sofreu na mão dos militares.
Ao gravar o filme, algo chamou atenção na trajetória de Brizola que você não conhecia?
Busco fazer esses filmes para falar de assuntos para além da figura do biografado. Fiz um filme sobre o Paulo Autran, que era uma figura central sobre um desejo de falar sobre teatro no Brasil. Fiz um filme sobre o Jards Macalé, no qual eu tinha o desejo de falar sobre a cultura marginal, sobre essa disputa eterna entre a cultura de vanguarda e o mercado, como um depende do outro. No caso do Brizola havia um interesse muito grande de falar sobre política, mais do que sobre a personalidade dele.
Brizola era uma figura contraditória. Como isso aparece no filme?
Claro que ele tem esse temperamento combativo. Inclusive, começa o filme com Samuel Wainer fazendo essa pergunta: "o Brizola que partiu do Brasil era uma pessoa mais combativa, agora há um Brizola mais conciliador, o que que mudou?" O Brasil mudou, nós mudamos. Essa questão do fazer política, o fazer político, a política em si, é muito interessante, porque ela pode se dar de uma maneira combativa ou conciliatória. Brizola foi demonstrando, ao longo do tempo, uma habilidade conciliatória muito grande de lidar com oposição, de lidar com ideias adversárias, de lidar com as próprias ideias, que é o cerne da democracia. Acho que isso é o que se ressalta mais na figura do Brizola.
Se Brizola fosse vivo hoje, como acha que encararia a atual política?
Essa foi a pergunta que a gente tentou fazer, inclusive, para alguns entrevistados. Quem sou eu para falar como o Brizola reagiria a determinadas situações? O que acho que dá para entender é que o Brasil carece de líderes políticos. Há muitos poucos líderes, ainda mais voltados para área mais progressista da política. Apesar de Lula estar na presidência, não se tem muitas lideranças expressivas. Acho que Brizola faz muita falta nesse sentido de encorpar o time dos descontentes com essa onda conservadora, assustadora, que vem trazendo uma coisa muito retrógrada para o Brasil. Acho que ele seria uma figura, no mínimo, emblemática.