A tragédia que se abateu sobre o Hospital Al-Ahli, no sul de Gaza City, bagunçou os planos da Casa Branca de tornar a viagem do presidente Joe Biden uma peregrinação pela paz. Antes do massacre, cujos responsáveis ainda não podem ser definidos de forma independente, o job description de Biden no Oriente Médio era: sob os holofotes das câmeras, reiterar o claro o apoio incondicional dos EUA a Israel diante do maior atentado terrorista de sua história. A portas fechadas, tentaria demover (ou ao menos alertar dos riscos) o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, da ideia de invadir por terra a Faixa de Gaza.
Biden, pelo que se sabe, tinha muitas expectativas. Saindo aqui de Tel Aviv, iria a Amã, encontrar-se com o rei Abdullah, da Jordânia, o ditador Abdul Fatah Al-Sisi, do Egito, e o presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP), Mahmoud Abbas. Seria Biden em dias de Bill Clinton, o fiador dos Acordos de Oslo, em 1993. Mas o ataque ao hospital, seja de que lado tenha partido, melou os planos americanos. Abbas foi o primeiro a cancelar a reunião, seguido pelos colegas árabes.
Assim, a vinda do presidente americano ao Oriente Médio limita-se a Israel - o que só enfurece ainda mais os líderes de grupos radicais, como o Hezbollah libanês, que conclamou um dia de fúria. Enquanto o Air Force One pousava no Aeroporto Ben Gurion, nos arredores de Tel Aviv, era possível ouvir, distantes, explosões provenientes da Faixa de Gaza. Biden desembarcou sob esses estrondos, ainda que bem mais leves do que os da noite anterior. Na terça-feira (17) à noite, Tel Aviv esteve sob forte chuva de foguetes, todos abatidos pelo Domo de Ferro, o sistema antimíssil. GZH registrou pelo menos duas explosões, próximas da orla da cidade, por volta das 21h, horário local.
Até os soldados israelenses posicionados próximos à Faixa de Gaza e prontos para invadir, aguardando apenas a ordem política, estão na expectativa em relação à visita de Biden. Alguns, com os quais GZH conversou, falam até que houve uma espécie de "cessar fogo" desde a última noite, apesar do som de tiros dominar, ao fundo, as conversas.
A tragédia do hospital Al-Ahli pode demarcar um ponto de inflexão na guerra, ainda que não se saiba de onde partiu o disparo - e talvez justamente por isso. Israel tem, desde terça-feira (17) à noite buscado dados e apresentado mapas na tentativa de demonstrar que o míssil teria saído da região mais próxima da orla de Gaza com destino ao território israelense, mas, voando baixo, teria encontrado, acidentalmente, o prédio do hospital. Seria obra da Jihad Islâmica, que nega. Já o Hamas diz que o míssil é israelense, obra de bombardeio aéreo.
Os terroristas palestinos podem ter disparado contra o prédio de forma proposital? Podem. Podem ter colocado posições militares, de artilharia, próximas ao prédio de saúde para atrair a mira israelense? Pode.
Israel pode ter errado o alvo e acertado um prédio civil? Pode.
Dificilmente saberemos, o que não deixa de ser uma derrota para todos nós - inclusive, jornalistas.
Em guerra, costuma-se dizer, a primeira vítima é a verdade, frase do senador Hiran Johnson, em 1918. Eu costumo dizer que os primeiros, realmente, são os civis - e dentre eles, as mulheres e crianças.
Seja quem for o responsável pelo ataque ao hospital, trata-se, sem dúvida, de crime de guerra. Assim como são crimes de guerra a movimentação forçada de populações ou ataques terroristas. Quanto a civis, as Convenções de Genebra são muito claras.
Mas a Justiça internacional é seletiva. Assim como talvez nunca se saiba quem apertou o gatilho contra o hospital, muito provavelmente nunca ninguém sentará no banco dos réus em Haia por conta desse ataque. E isso é mais uma derrota para todos nós, como humanidade.