O episódio envolvendo o médico gaúcho Victor Sorrentino, detido por assédio a uma vendedora de loja em Luxor, no Egito, só ganhou visibilidade graças à articulação da sociedade civil egípcia e brasileira.
Desde a Primavera Árabe, que depôs o ditador Hosni Mubarak após 30 anos no poder, várias ONGs feministas e coletivos de defesa dos direitos humanos se organizaram por meio de redes sociais para buscar denunciar e, com algum grau de sucesso, levar à mobilização das autoridades, como o Ministério do Interior do Egito, para que acusados sejam detidos ou processados. O anúncio oficial da detenção de Sorrentino foi feito pelo próprio ministério.
"O Ministério do Interior conseguiu prender um estrangeiro após assédio a uma mulher, depois que ele publicou um vídeo com imagens do incidente em uma rede social, onde os serviços de segurança conseguiram identificar a vítima e o autor, e tomar as medidas judiciais contra ele e apresentar ao Ministério Público competente", afirmou o órgão na nota.
A chamada Primavera Árabe foi um ponto de inflexão nesse tipo de mobilização da sociedade civil. Primeiro porque o grande canal de comunicação utilizado pelos manifestantes contra o regime militar eram as redes sociais. Era por meio delas que os jovens, em sua maioria, marcavam dia e local para os protestos - a maior parte concentrados na Praça Tahir, no Cairo. Segundo porque naqueles dias de rebelião, que seguia uma lógica iniciada na Tunísia contra anos de regimes militares, muitas mulheres foram violentadas - o caso mais conhecido internacionalmente foi o da jornalista americana Lara Logan, da CBS, abusada sexualmente na praça após a derrubada do regime (aqui, ela conta os detalhes terríveis do episódio ao programa 60 Minutes).
As mulheres egípcias, infelizmente, estão habituadas a casos de assédio. E situações como essas só ganham os noticiários internacionais quando envolvem ocidentais.
Apesar de ser um dos mais turísticos e ocidentalizados países árabes, o Egito ainda é uma sociedade patriarcal, onde o testemunho das mulheres perante a Justiça vale a metade da palavra de um homem.
Isso vem mudando graças a atuação de ONGs como a Speak Up, que atuou no caso de Sorrentino (acima, a mensagem do grupo sobre o episódio em árabe, inglês e português). Segundo relato em redes sociais, a organização se mobilizou a partir "de meninas e jovens do Brasil que se opuseram ao vídeo desde o primeiro momento e que continuaram escrevendo sobre o incidente por 3 dias até que decidiram coletivamente nos enviar mensagens explicando o que aconteceu, então a garota inocente tomou seu direito". O texto da ONG considera que a detenção "é um esforço coletivo, não individual, em diferentes parte do mundo". A mobilização nas redes sociais elevou a hashtag "responsabilizem o assediador brasileiro, em tradução literal" a trending topics no país.
O Egito, que derrubou a ditadura de Mubarak em 2011, viveu um curto período de democracia, com Mohamed Morsi no poder. Naquele ano, ele sofreu um golpe militar que recolocou os militares no poder. Hoje, o presidente é o general Abdul Fatah Khalil Al-Sisi, que representa a ditadura de volta ao governo.
De 2014 para cá, o país passou por toda uma rediscussão legislativa, com a atualização da Constituição. Assédio sexual, por exemplo, não era considerado crime. Hoje, é. A lei prevê multas ou pena de seis meses a três anos de prisão para esse tipo de delito.
A base da legislação, como em todo o mundo árabe, ainda é, no entanto, a sharia - a lei islâmica.
O episódio envolvendo Sorrentino ocorreu em Luxor, no sul do Egito, onde o Brasil não tem representação diplomática. Desde 2019, o embaixador do Brasil no Cairo é Antonio Patriota, que foi ministro das Relações Exteriores no governo Dilma Rousseff.
Não é incomum casos de brasileiros presos no Egito. Em 2016, um grupo de paranaenses foi preso no país por tráfico de drogas. Antes, em 2010, um homem foi detido por proselitismo. Nesses casos, o que dificulta trazê-los de volta ao Brasil é que os dois países não têm acordo de extradição, algo que o Ministério da Justiça vem tentando mudar desde o comando do agora ex-ministro Sergio Moro.
A coluna enviou uma série de questionamentos ao Itamaraty a respeito da situação do médico Victor Sorrentino. A resposta, por meio de nota, é a seguinte:
"O Itamaraty, por meio de sua Embaixada no Egito, presta toda a assistência possível a brasileiros privados de liberdade naquele país, respeitando os tratados internacionais vigentes, como a Convenção de Viena sobre Relações Consulares, e a legislação local.
O Itamaraty já foi informado sobre o caso e as autoridades brasileiras no Egito estão prestando assistência consular cabível ao cidadão.
Em atendimento ao direito à privacidade e em observância ao disposto na Lei de Acesso à Informação e no decreto 7.724/2012, o Ministério das Relações Exteriores não fornece informações sobre casos individuais de assistência a cidadãos brasileiros."