Desde a publicação de uma reportagem, com base em informações de inteligência, pelo The Wall Street Journal, cresceram as suspeitas de que o coronavírus possa ter surgido a partir de um "vazamento" do patógeno do Instituto de Virologia de Wuhan, na China.
A hipótese divide a comunidade científica, mas ganhou corpo em razão do relatório da Organização da Mundial da Saúde (OMS) ter sido muito vago sobre essa possibilidade. Na quarta-feira (26), o presidente americano, Joe Biden, pediu às agências de inteligência uma investigação mais aprofundada e um relatório conclusivo em 90 dias. A coluna informa o que se sabe e o que se desconhece sobre a origem da covid-19.
A hipótese natural
A tese mais provável, na opinião de boa parte dos cientistas, é de que o coronavírus tenha surgido naturalmente - embora não se tenha determinado com precisão em que animal tenha se desenvolvido, o morcego é a possibilidade mais mencionada. Estudos reforçam a tese de que o Sars-CoV-2 é tão adaptado a se reproduzir em mamíferos que, quando em ambiente de laboratório, sofre mutações imediatas e se torna menos propício a infectar humanos.
O relatório final da OMS, cujos especialistas passaram quatro semanas em Wuhan, inclina-se para a hipótese de uma transmissão do vírus aos seres humanos por meio de um animal intermediário (ainda não identificado) infectado por um morcego. O texto também concluiu como "extremamente improvável" que a pandemia tenha sido provocada por um acidente de laboratório. No entanto, o próprio diretor geral da entidade, Tedros Adhanom Ghebreyesus, admitiu que todas as hipóteses (inclusive vazamento) levantadas no relatório merecem um estudo mais aprofundado. Os especialistas não estudaram a possibilidade de um ato deliberado, ou seja, de que o vírus tenha sido vazado de propósito pelas autoridades chinesas.
A hipótese do vazamento acidental
A ideia de surgimento natural do coronavírus começou a ser questionada com mais força depois que o jornal The Wall Street Journal publicou, na segunda-feira (24), uma reportagem tendo como base um documento de inteligência segundo o qual três cientistas do Instituto de Virologia de Wuhan teriam sido hospitalizados em novembro de 2019 com sintomas semelhantes aos da covid-19. A China só informou casos de coronavírus à OMS em 30 de dezembro daquele ano - e nunca citou o caso dos cientistas.
Antes, The New York Times e ProPublica realizaram investigações jornalísticas que apontaram que o Partido Comunista Chinês colocou em campo todo o seu aparato burocrático para tentar minimizar a gravidade do surto que ganhava corpo em janeiro de 2020, ao suprimir noticias sobre o tema e alimentar desinformação em redes sociais. Os documentos a que os veículos tiveram acesso foram vazados por hackers.
Nos últimos dias, várias autoridades do governo Joe Biden vêm dizendo que a hipótese precisa ser alvo de nova investigação. A primeira, realizada por pesquisadores da OMS que foram a Wuhan, concluiu que é "altamente improvável" a ideia do vazamento, mas faltou contundência ao descartar essa possibilidade. Sabe-se também que a equipe de especialistas não teve acesso total aos locais necessários para a investigação nem liberdade para conversar com funcionários locais do regime.
Autoridades como Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos EUA, dizem que "o mais provável" é que o vírus tenha surgido na natureza, mas "ninguém tem 100% de certeza".
A teoria de que o vírus tenha escapado de laboratório tem sido objeto de debates na comunidade científica, mas não tem adesão majoritária. Em março, 25 pesquisadores divulgaram carta aberta pedindo um novo inquérito da OMS. Em maio, 18 cientistas de universidades de elite, como Harvard, Stanford e Yale, também pediram uma nova investigação em carta publicada na revista Science.
A hipótese do vazamento proposital
A ideia de que o coronavírus tenha sido "vazado" propositalmente pelos chineses, como uma arma biológica para "infectar o mundo", como supostamente parte de um plano do Partido Comunista Chinês para que o país se consolide como grande potência hegemônica no sistema internacional, "destruindo economias rivais", é tido como teoria da conspiração. Foi criada e alimentada por setores ultraconservadores americanos (alt-right) e adotada, em parte, por algumas alas do Partido Republicado e por funcionários do governo Donald Trump. Essa hipótese também é levantada, de tempos em tempos, pelo presidente Jair Bolsonaro.
Nos últimos meses, sites e redes sociais espalharam notícias falsas sobre o suposto teste com arma biológica por parte da China antes da pandemia. Não há evidências que sustentem essas afirmações.
Muitos estudos descartam essa hipótese. O mais citado foi feito por americanos, britânicos e australianos e publicado na Nature Medicine. Em março de 2020, a equipe liderada pelo Instituto Scrips, em La Jola (EUA) e pela Universidad de Edimburgo (Escócia, Reino Unido) concluiu que "a análise mostra claramente que o Sars-CoV-2 não é uma construção de laboratório ou um vírus propositalmente manipulado". Para chegar a esse resultado, os pesquisadores compararam a estrutura genética do Sars-Cov-2 com a de outros vírus da mesma família. Os cientistas destacam que, se houvesse manipulação genética em laboratório, a estrutura do novo coronavírus seria parecida com a de outros organismos existentes, porque essas alterações partiriam de moldes conhecidos. "As informações genéticas mostram de maneira irrefutável que o sars-Cov-2 não é derivado de nenhuma estrutura central de vírus usada anteriormente", diz o texto da pesquisa.
Embora haja vários estudos sobre a chamada "guerra híbrida" - estratégia de guerra não convencional que busca desestabilizar governos por meio de mescla de táticas políticas e econômicas, diplomática e ciberguerra com outros métodos de influência, tais como desinformação -, esta tese, no caso chinês, é pouco apoiada por pesquisadores e estrategistas uma vez que a própria China sofreu com o coronavírus, com perdas humanas e econômicas - com potencial de perdas políticas. O coronavírus no país infectou 102,9 mil pessoas e matou 4,8 mil, segundo dados oficiais. O país também registrou o pior índice de crescimento econômico em 44 anos - ainda que tenha conseguido um feito raro, crescer em um ano marcado pela pandemia, 2,3% em 2021. No primeiro semestre, a nação teve uma queda histórica do PIB, de -6,8%. A indústria conseguiu se recuperar, mas o consumo doméstico ainda não. A pandemia representa um desafio enorme para a China porque o regime autocrático, de partido único, depende do crescimento econômico contínuo para manter legitimidade popular. Os dados econômicos contraiam a teoria de que o vírus vai ao encontro dos interesses chineses, uma vez que a própria sobrevivência do governo depende de a economia crescer. Outro ponto é que a China é o maior exportador de mercadorias do mundo - se os outros países estão em crise, compram menos produtos chineses. Uma crise econômica mundial, portanto, não é vantajosa para o país.