Quem diria, não? Nosso país acaba de proporcionar a nós mesmos e ao mundo uma clara demonstração de que alcançamos estabilidade institucional em um cenário antagônico a isso. Reflitamos. O governo da república foi afetado por profunda crise moral. Os abracadabras e confessionários da operação Lava-Jato labutam para elucidar e resgatar, de um sem número de grutas, os bilhões entesourados pela quadrilha que operou no poder. O segundo mandato presidencial de Dilma Rousseff nasceu maculado por mistificações, pela publicidade enganosa, pela ocultação da verdade sobre a situação do país aos eleitores e às instituições (causa final do crime de responsabilidade). As investigações promovidas a partir de Curitiba trouxeram à luz, adicionalmente, gravíssima denúncia sobre a origem de recursos usados na campanha vitoriosa em 2014. O país entrou em insólita recessão, com efeitos dramáticos na economia, nos empregos, na renda e na adimplência das famílias. A inflação galgou dois dígitos. A população, aos milhões, nas ruas e praças, conclamou as instituições a cumprirem seu dever.
A estratégia de transformar o processo de impeachment numa jogada do senhor Eduardo Cunha é manobra diversionista que, em vão, tenta escamotear milhões de pessoas na Paulista, no Parcão, em Copacabana, na Praça da Liberdade e em centenas de outros pontos de concentração, gerando imagens de empolgante beleza plástica e impressionante energia cívica. Ao apontar suas baterias contra Cunha, o governo findo tentou dissimular o clamor popular da mesma forma que, em suas manifestações dos últimos meses, omitiu qualquer referência aos milhões de desempregados, às empresas que fecharam suas portas, a tantos sonhos destruídos. Incontáveis vezes, desde que a crise não mais pode ser ocultada, o governo e os que por ele falavam, mirando a própria cavidade umbilical, queixavam-se da queda da arrecadação federal e da falta de dinheiro para as despesas do governo. E nada era dito sobre a receita das famílias e das empresas, exauridas por uma crise pela qual não precisavam estar passando. Apesar da queda do crescimento chinês, a economia mundial tem se expandido na ordem de 2,5% em média, desde 2012 (data.worldbank.org) e deve ficar em 3% positivos neste ano. Mais uma vez, as coisas não são como a ex-presidente falou ao Senado e à nação. O desempenho negativo da economia brasileira é o segundo pior no cenário mundial.
Num procedimento minucioso e constitucional, as instituições brasileiras agiram, até a undécima hora, com autonomia e correção. Nada expõe mais nitidamente a ausência de ânimo golpista do que o acolhimento, também com maturidade política, de três consecutivas vitórias petistas nas eleições presidenciais anteriores. O PT não teria tolerado três derrotas sucessivas sem reproduzir a enxurrada de requerimentos de impeachment que lançou contra seus antecessores na presidência. O caldo entornou em 2014 pelas razões elencadas acima. Entre o povo na ruas, dando origem aos primeiros requerimentos de impeachment, e o 31 de agosto de 2016, transcorreram 17 meses! Entre o 2 de dezembro de 2015 (data em que foi despachado um dos requerimentos de impeachment) e o juízo definitivo do Senado, foram nove meses. Permanentemente escaneado pelo STF, acompanhado ao vivo pela nação, cumprindo rito constitucional e legal, procedeu-se uma sequência que pareceu inesgotável de votações e escrutínios. Na undécima hora, contudo – solitária irregularidade! –, foi aprovado o escandaloso fatiamento da pena, numa solicitação de quem? Do PT.
Malgrado a evidente estabilidade institucional, cabe indagar se esse modelo tem a devida racionalidade. Será razoável que a solução de uma crise política, mesmo em presença simultânea de crime de responsabilidade e perda de apoio popular e parlamentar, só seja resolvida mediante procedimentos tão complicados e lentos que transformam em crise a solução da crise, aprofundando-a? Os países parlamentaristas resolvem tais problemas em poucos dias, pacificamente, sem semeadura de ódios e traumas históricos.