Crônica publicada em 22/4/2000
Todos me perguntam, nos elevadores, nas calçadas, nos restaurantes, nas filas dos bancos e das lotéricas, por toda a parte onde me aventuro a mostrar meu rosto, se devem cumprimentar o Paulo ou o Pablo.
Sem querer, me parti em dois e essa dicotomia caiu no gosto popular, depois que a incentivei em meus espaços. Respondo que ora cumprimentam Pablo, ora, Paulo. Tenho surtos de Paulo e acessos de Pablo.
Pablo está com o ombro congelado e duas marcas rubras de ventosas marcam a extensão do osso úmero no antebraço esquerdo, depois que o acuputurista Tone passou ali com a sua carga de cavalaria cossaca, cravando-me 20 agulhas em decúbito dorsal pelo corpo, mais de 20 agulhas em decúbito ventral. Pablo, portanto, é o que sofre no físico, embora também as agruras mentais e espirituais a ele caibam.
Já Paulo continua a ser um mancebo gozador da vida e aproveitador dos prazeres que ela oferece. Todas as mordomias da existência são designadas a Paulo, todos os infortúnios a Pablo.
Paulo é que vai aos restaurantes e empanturra-se de carnes, massas e saladas. Arrisca às vezes taças de vinho tinto ou branco, tudo nos conformes com as carnes que devora, de aves, de mamíferos quadrúpedes, de peixes com ou sem escamas e crustáceos.
Já a Pablo são reservadas as agruras de decifrar os mistérios filosofais da existência. Ontem, por exemplo, aconselharam Pablo a postar-se sempre casado, embora não descuide de cultivar permanentemente uma amante que o traia, que este é o segredo para manter tanto o casamento quanto o concubinato felizes.
Já pensaram nos inúmeros códigos de comportamento que diariamente Pablo tem de mentalizar e escolher como caminhos a serem seguidos? O fato é que é bom ser-se dois. Reparte-se assim igualitariamente os encargos do destino.
Paulo se encarrega das tarefas do cérebro, que são as da escória de seu corpo e de sua mente. Pablo fica entregue às incumbências do coração, as mais nobres da delegação divina ao homem.
E como o cérebro administra o lixo humano e dispara o revólver, por exemplo, enquanto o coração superintende o sublime humano e dispara a lágrima, por exemplo, eu sou mais Pablo que Paulo. Mas Pablo por vezes se sente exausto de tanta bondade e dá lugar a Paulo, que então se refestela a espalhar suas misérias e vergonhas.
Todos nós em verdade somos dois em cada um. Eu é que resolvi definitivamente assumi-los. Façam isso também e verão que fica muito mais fácil levar a vida em frente.
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