Não é proibido sonhar. Nem é proibido ter pretensão. Então permitam que eu sonhe com a morte e tenha a pretensão vaidosa de um enterro digno. Quando eu morrer, quero à beira da sepultura todos os meus amigos e alguns dos meus inimigos arrependidos. Prepotentemente, desejo que a RBS transmita as cenas finais do sepultamento, um microfone de rádio e uma câmera de televisão, instrumentos que marcaram tanto a minha vida, devem estar atuantes no desenlace. As emissoras concorrentes podem também – isso será inevitável na minha morte – fazer a cobertura do evento. Já tenho a lista dos cinco oradores que designarei para a beira do meu túmulo. Um é orador nato, escolhi-o para dar solenidade à ocorrência. O segundo orador vai falar pelos boêmios que me acompanharam ao tempo em que eu era boêmio. O terceiro recitará um poema de Augusto dos Anjos, terrível poema, que versará sobre a minha necropsia, constando dele o seguinte quarteto: "Tome, doutor, esta tesoura e corte/ minha singularíssima pessoa/ que importa a mim que a bicharia roa/ todo o meu corpo após a minha morte".
O quarto orador – a ordem será decidida no momento, pois um dos cinco já andou me pedindo para ser o primeiro – discursará sobre a minha vida e sobre o que os meus circunstantes na vida aprenderam comigo, fazendo a ressalva de que muito mais eu aprendi com todos eles. O último orador recitará três belíssimos versos que sintetizarão toda a minha desgraça na passagem pela Terra, de um poeta que desconheço, mas que atingiu no nervo primal a minha maior encrenca: "Maldita sejas pelo ideal perdido/ pelo mal que me fizeste sem querer/ pelo amor que morreu sem ter nascido/ pela tristeza do que eu tenho sido/ e pelo esplendor do que deixei de ser". A seguir, se sucederão todos os oradores do povo que quiserem falar, que só serão interrompidos quando espocar o primeiro acorde da orquestra de 80 músicos que executará as quatro páginas da minha preferência: No llores por mí, Argentina, Yesterday, Eu e o meu coração, de Lupicínio Rodrigues, e a imortal Ronda, de Paulo Vanzolini. Depois disso, empurrem o caixão para a gaveta, com lágrimas e risos de toda a multidão, lágrimas de homenagem à saudade, mas saudade minha por não poder continuar na companhia amiga e adorável de todos vocês. E risos para que se relembrem todos os instantes felizes que marcaram a nossa convivência, quando a nossa amizade, a intimidade que tivemos, tanto pessoalmente como através do rádio, desta coluna e da televisão, fez tremer de orgulho o trono de Deus, por ter ele criado pessoas tão maravilhosas como nós, meus amigos, meus parentes, meus leitores, telespectadores e ouvintes e, humildemente, eu.
Depois dos risos e das lágrimas, voltem para casa e nunca mais se esqueçam de mim. Porque eu vou estar torcendo por vocês lá do lugar em que eu me encontrar. E os meus três filhos, a minha ex-mulher, a minha atual mulher, os meus irmãos, os meus colegas, os meus amigos, todas as pessoas que alguma vez emocionei com o que disse ou escrevi, no meu trabalho ou no cotidiano, suave ou árduo, tenham a certeza de uma coisa: estarei com vocês em todos os instantes da vida que prosseguirem na caminhada que lhes restar. Vou chorar quando vocês tiverem dor, vou vibrar quando vocês estiverem se sentindo felizes. A minha presença fluídica acompanhará vocês por todos os caminhos e em todos os lugares, só isso quer dizer eternidade. E essa relação de perenidade vai-se estabelecer obviamente entre nós, porque o único fato que nos ligou até aqui e sobreviverá após a minha morte, tornando-nos iguais e próximos, foi o amor. Eu falei, e repito, na única coisa que vale a pena na vida: o amor.
Crônica publicada em 21/07/95