Eu tinha quatro anos e morava numa casa de cômodos da Rua Lima e Silva, junto à André da Rocha, por onde passava o desfile dos cordões carnavalescos, precedido do corso em que era sinuelo uma baratinha conversível em que vinham abanando para o público o Rei Momo Vicente Rao, de rosto engessado de maquiagem, e a rainha do Carnaval.
Atrás deles, uma multidão frenética de pierrôs, colombinas e arlequins, cercados de centenas de músicos que faziam ecoar por todo o bairro seus instrumentos de sopro, ritmados pelo castigo inclemente que sofriam os couros da percussão, uma atroada ensurdecedora, numa alegria contagiante que dominava toda a cidade.
Guardo ainda bem guardada a serpentina
Que ela jogou
Ela era uma linda colombina
E eu um pobre pierrô.
Guardei a serpentina
Que ela me atirou
Brinquei com a colombina
Até as sete da manhã
Chorei, quando ela disse
Vou me embora, até amanhã,
Pierrô, até amanhã.
Era um Carnaval de folia saudável nas ruas, até quando se transferiu para a Borges de Medeiros com a Rua da Praia, depois de passar pela hoje Rua João Alfredo.
Muito confete, muita serpentina, que eram vendidos em tendas imensas, com caixas de lança-perfumes de vidro ou de metal, da Rhodia.
Os tempos eram tão inocentes, que os jatos de lança-perfumes eram jogados contra os colos e dorsos femininos ou até, numa pequena maldade, contra os olhos dos rapazes, mas não eram utilizados como entorpecentes.
Quando se descobriu a delícia da aspiração do lança-perfume em lenços empapados, logo ele foi proibido em todo o território nacional. Com isso se depauperou o lançamento da serpentina e do confete, o Carnaval começou a perder uma das principais essências do seu encanto.
A principal tradição carnavalesca porto-alegrense ainda remanesce em Pelotas: os grandes cordões carnavalescos eram constituídos de homens vestidos de mulheres.
O humor tinha prevalência sobre a sensualidade – acho que quando se inverteu essa relação o Carnaval perdeu muito da sua espontaneidade.
Até que a influência carioca se derrubou sobre nossa capital, o que Ismael Silva primeiro denominou de escola de samba passou a predominar nos desfiles, tirando da nossa festa popular o caráter participativo, e a folia deixou de ser abrangente, pertencente a todos que saíam às ruas, para se caracterizar como uma parada musical de fantasias, em que a massa do povo foi ser espectadora quase que passiva nas arquibancadas.
Mas de 1940 até hoje, com grande ênfase até 1970, agora com visível decadência, o grosso da folia porto-alegrense, como em Pelotas e em todo o Estado, se localizou nos bailes populares e das sociedades.
A Cabana do Turquinho, onde houve a primeira manifestação de fausto das fantasias dos travestis, e As Mil e Uma Noites, no bairro Assunção, foram os bailes populares mais famosos e ensandecidos.
Mas o grande caudal carnavalesco se deslocou para os clubes. Em Pelotas, o Diamantino e o Brilhante se destacavam. Em Porto Alegre, o Dinamite e o Parnamirim. A herança de ferveção salonística foi minguando, com a brava resistência do Teresópolis nas décadas últimas do século passado.
E para o descanso do público tomado de suor no salão, a orquestra ainda hoje ataca com o hino moderno da marcha-rancho campeã dos Carnavais:
Quanto riso, quanta alegria
Mais de mil palhaços no salão
Arlequim está chorando
Pelo amor da colombina
No meio da multidão.
Quanto riso, quanta alegria. Estranho, mas recordando-os a gente se emociona de saudade e sente a vontade contrária de chorar.
Crônica publicada em 25/02/01