Governador eleito do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC) tem dito que a polícia, em sua gestão, estará autorizada a matar quando avistar alguém portando fuzil em uma comunidade. "Vai mirar na cabecinha e... fogo", disse ele ao Estadão.
É o tipo de assunto que costumo chamar de inibidor de raciocínio. Porque praticamente ninguém aceita debater racionalmente. Outro inibidor de raciocínio é a redução da maioridade penal, bandeira de Bolsonaro sobre a qual escrevi na semana passada – se você é contra, é defensor de bandido; se é a favor, é um fascista. E acabou, não se discute mais nada. Mesma coisa a proposta de Witzel.
Concordo que o simples fato de uma pessoa andar com um fuzil para lá e para cá, mesmo sem apontá-lo para alguém, já configura ameaça à ordem pública. É uma interpretação razoável: aquele sujeito, naquele momento, está aparelhado para arbitrar sobre a vida de qualquer um. Portanto, não é nenhum absurdo a polícia atirar. Desde que o policial, claro, conclua que essa é uma necessidade, que não há riscos para o entorno, que se trata de uma estratégia eficaz. A decisão é dele.
Só que isso é exatamente o que ocorre hoje. A polícia já mata em todo tipo de situação no Rio de Janeiro: só neste ano, até julho, segundo o Instituto de Segurança Pública, foram 895 mortes de suspeitos, o que representa uma média de quatro por dia. É o maior número desde 1998, quando a pesquisa começou – e, na comparação com 2017, o aumento é de 40%. Witzel venceu a eleição dizendo que policiais que matarem quem porta fuzis não devem ser responsabilizados. Mas nunca houve motivo para essa preocupação: um estudo da UFRJ mostrou que, em 2005, por exemplo, 99,2% das mortes por policiais foram arquivadas antes de chegarem à Justiça. E a Anistia Internacional, em 2015, divulgou que, entre todos os 220 casos de 2011, apenas um havia chegado ao Judiciário.
Em resumo, não há novidade alguma no que Witzel propõe. O fato é que orientações como essa, que envolvem respostas sobre onde, quando e como os policiais devem matar, são diretrizes a serem debatidas no âmbito técnico da polícia. São questões operacionais, práticas – e não políticas. Não é o governador quem deve estipular as circunstâncias para "mirar na cabecinha e fogo", mas o estrategista da tropa, o entendido no assunto.
A vida de 10, 20 ou 200 bandidos não faz a menor diferença para o crime organizado. Mate 50 pessoas hoje e, amanhã, haverá outras 50.
Porém, claro, em um Estado acossado pela violência, levar essa questão técnica para a campanha política deu certo. É um populismo rasteiro, porque passa a impressão de que, se a polícia sair matando a la louca, a criminalidade vai recuar. Mas não: a vida de 10, 20 ou 200 bandidos não faz a menor diferença para o crime organizado. Mate 50 pessoas com fuzis num dia e, no dia seguinte, haverá outras 50.
Não é um problema em si a polícia dar tiro, o problema é fazer isso sem estratégia. Se matar a rodo funcionasse, se isentar policiais de responderem pelas mortes funcionasse, o Rio de Janeiro já estaria solucionado – porque é precisamente o que se faz hoje. Uma proposta menos demagógica seria fortalecer as investigações para que os fuzis, que vêm de fora do país, não chegassem ao Estado.
Sabe-se também que os recursos para comprar essas armas – e para sustentar todo o tráfico – vêm de esquemas mastodônticos de lavagem de dinheiro. Quando os governos mirarem nisso, e não só nas cabecinhas, aí quem sabe o debate vira racional, e não mais esse inibidor de raciocínio.