Estávamos, eu e minha mãe, falando mal do Michel Temer, o café preto fumegando à minha frente e a fatia de pão descansando no pires, então perguntei por que, na opinião dela, as manifestações cessaram depois que Dilma caiu.
A resposta da mãe congelou meu café, deixou a manteiga do pão rançosa e empedrou o bolo de chocolate que repousava no centro da mesa. Ela não disse que o povo cansou. Nem que as pessoas só odeiam o PT. Nem que a indignação arrefeceu, nem que a corrupção importa pouco. Ela disse assim:
– Não me sinto convocada.
Minha mãe não se sente convocada.
Entenderam isso?
Ela quer protestar, mas não tem protestos. Quer se manifestar e gritar e se embrenhar nas multidões, mas ninguém convoca essas multidões. E as multidões estão furiosas, é mentira que o povo cansou, essas multidões indignadas existem e minha mãe faz parte delas, mas, por favor, não vá esperar que uma senhora de 64 anos, sem o menor poder de mobilização, sem sequer saber criar um evento no Facebook, seja catalisadora de multidões. Não será.
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Esse catalisador de multidões é o que Elias Canetti chamava de cristal de massa – uma metáfora que ele buscou na química, sua área de estudo na universidade, para mostrar como as massas se aglutinam. Primeiro: não existe manifestação de massa espontânea. Pode haver um protestinho espontâneo aqui, uma panelinha batendo lá, mas uma manifestação de massa, daquelas gigantescas que ameaçam o status quo e arrepiam a espinha de um presidente, essa aí precisa do cristal de massa. É ele que percebe os anseios, receios, medos e esperanças de indivíduos dispersos, como a minha mãe, depois agrupa esses indivíduos e dá sentido àquela massa.
O último cristal de massa brasileiro foi o MBL, principal organizador das manifestações pelo impeachment de Dilma. Depois que a presidente caiu, líderes do movimento passaram a ocupar cargos públicos, eletivos e comissionados, em uma série de cidades país adentro. Quer dizer: o MBL aderiu ao status quo.
Aqui jaz um cristal de massa.
Que cristal de massa existe hoje pedindo a saída de Temer? PT, CUT, UNE, MST? Essa turma se acostumou de tal forma aos mecanismos de cooptação do governo anterior, que se inviabilizou como representante de massas – viraram grupos estéreis, incapazes de liderar qualquer convergência de maior proporção. Não temos mais a UNE do Fora Collor, nem o PT das Diretas Já, nem a UDN contra Getúlio, nem o Brizola da Legalidade, nem o Movimento Passe Livre de 2013.
Sem um cristal de massa, qualquer estopim para a rebelião nas ruas, qualquer novo fato que confirme a bandalheira desse governo claudicante não é aproveitado – não serve de gatilho para a revolta de uma massa, ainda que os indivíduos dispersos, como a minha mãe, estejam sedentos por dizer "basta". Nenhum presidente cai sem o clamor das ruas. E nenhum clamor se materializa sem um cristal de massa para conduzi-lo.
Portanto, se alguém aí estiver articulando um protesto contra Michel Temer, que faça logo. Multidões vão apoiar, tenho certeza, só que o tempo é curto. Vamos logo, por favor, minha mãe aguarda aflita.