Todos os homens olhavam para ela, inclusive o meu amigo, mas aquilo o incomodou. Claro, talvez a maior incomodada fosse ela, que certamente notava como aquele bando de esfomeados examinava seu corpo, nenhum deles preocupado em ser muito sutil.
Meu amigo, então, preferiu admirar a moça pela imagem dela refletida no painel de propaganda. O painel mostrava a foto de um picolé qualquer e ficava à direita da mulher, que se mantinha imóvel a dois passos do ponto de ônibus. Ele achou que assim, observando-a pelo painel, de alguma forma se diferenciasse dos outros – ele realmente se achava diferente dos outros.
Júlio, o meu amigo, era solidário à aflição das mulheres. Sabia o quanto elas têm exigido respeito na rua, o quanto devia ser chato conviver diariamente com abutres que insistem em rondá-las como se fossem carniça. Sentiu vontade de dizer isso para ela, que não era como os outros – e que, embora também a olhasse, seu desejo por conhecê-la era genuíno.
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Ela tinha uns 28 anos. E tinha uma postura elegante e o cabelo loiro preso em rabo de cavalo. Quando o ônibus chegou, ele decidiu segui-la, ainda que fosse melhor tomar outra linha para depois caminhar menos. Manteve-se alguns passos atrás dela, então a viu sentar-se no banco mais próximo à saída, os joelhos bem juntos, as mãos graciosamente pousadas no colo, os olhos verdes mirando a rua.
Alguma coisa além da beleza o atraía naquela mulher. Era como uma necessidade de dizer "olhe aqui, por favor, não sou como eles, não vou lhe fazer mal". Mas como falar isso? Sobre as cantadas de rua, Júlio sempre pensou como eu. É um comportamento que precisa ser coibido por lei, como já fizeram em Portugal, na Argentina, na Bélgica, no Egito e no Peru.
Júlio formou-se em Direito e sempre dizia que, embora o assédio sexual seja um crime, não há clareza sobre quais práticas se encaixam na definição de assédio. Ora, se a maioria das vítimas de assédio são mulheres, e se as mulheres atravessaram os últimos anos bradando contra as cantadas de rua, é hora de incluir na legislação as tais cantadas de rua. Até porque haveria um forte impacto pedagógico na medida: o recado seria que a sociedade rejeita essa conduta, que essa conduta precisa ser arrancada da aceitação cultural.
Só que agora o Júlio precisava falar com a moça. E alguma mulher no mundo gostaria de ser abordada assim, no meio do ônibus? Bem, se fosse algo honesto e educado, é possível que sim. Mas encará-la nos olhos, por exemplo, seria uma forma de intimidá-la? E tocar em seu ombro para chamá-la, seria uma forma de molestá-la?
O ônibus começou a andar rumo à Borges de Medeiros, as paredes da rua passando rápido, uma senhora gorda com uma sacola da Marisa balançando sem parar, os homens espiando a bela mulher por cima dos celulares. Se ao menos acontecesse alguma coisa, se o ônibus batesse no meio-fio, se entrasse alguém engraçado vendendo rapadura, se a senhora gorda caísse do banco, aí haveria algum pretexto para falar com ela, sentada a um metro e meio de distância.
Mas o ônibus seguiu normalmente, como sempre ocorre quando a gente não quer. E parou no Viaduto Otávio Rocha. Depois na Ponte dos Açores. Depois no Tribunal de Justiça, e então a moça se levantou, apertou a campainha, agarrou por um instante uma das barras de apoio e se foi.
Júlio pensa até hoje, toda noite antes de dormir, no que dirá se um dia encontrá-la de novo na parada de ônibus.