Rafael tremia; uma bola de pavor lhe invadiu a goela.
– Não pode ser ele, não pode ser ele – repetiu em voz baixa, mas seguiu caminhando. – Deve ser alguém parecido, não pode ser ele.
E o homem veio vindo. Veio andando com o queixo erguido, pisando firme a calçada da Borges de Medeiros, cada vez mais perto, cada vez mais nítido, cada vez mais ameaçador para o atônito Rafael, que agora sentia um arrepio gelado na espinha e concluía que sim, era ele mesmo. E os dois se cruzaram sem dizer nada.
Rafael andou mais 10 passos e olhou para trás: o homem também olhava para trás, também o reconhecera. Era Guilherme Antônio Nunes Zanoni, 26 anos, assassino confesso de seu pai. Ele estava preso até a semana anterior, no Presídio Central, mas obteve um habeas corpus para aguardar o julgamento em prisão domiciliar. Agora, Rafael o encontrava na brisa da rua, livre como um passarinho silvestre.
Em 5 de novembro do ano passado, o pai de Rafael, Oscar Vieira Guimarães Neto, 61 anos, entrou no prédio onde morava por volta das 20h. Tomou o elevador, desceu no segundo andar e, quando abria a porta de seu apartamento, foi puxado por Guilherme, o vizinho da frente. Gritou por socorro enquanto recebia facadas no pescoço. Quando a polícia chegou, Guilherme foi preso em flagrante ao lado do corpo ensanguentado, usando luvas cirúrgicas. O motivo do crime seria uma desavença originada dois anos antes em uma reunião de condomínio – Oscar, a vítima, era síndico do prédio.
Em um texto compartilhado por mais de 19 mil pessoas no Facebook, Rafael fez um protesto emocionado. "Eu me formei em Direito, mas não sei responder qual direito eu tenho. O assassino tem direito de estar com a família, respondendo ao processo em casa. Que direito eu tenho? (...) O único direito que eu tive foi o de enterrar meu pai", dizia um trecho do texto.
O assassino foi solto porque é advogado. E advogados – assim como promotores, juízes e defensores públicos – têm direito a aguardar a sentença nas chamadas salas de Estado-Maior, que são espaços sem grades, separados dos demais presos. Como não há salas de Estado-Maior desocupadas no Rio Grande do Sul, desembargadores do Tribunal de Justiça foram coerentes ao mandar Guilherme para a prisão domiciliar: não se pode trancafiar alguém em um regime pior do que o previsto. Se o regime previsto está indisponível por uma falha do Estado, deve-se conceder ao preso um regime melhor. Está certo, ainda que pareça revoltante.
Situações como essa ocorrem todos os dias no Brasil. Traficantes, homicidas, estupradores e assaltantes deixam de cumprir pena no regime em que deveriam cumprir porque faltam 250 mil vagas no fechado, no semiaberto e no aberto. Esses juízes que autorizam os presos a irem para casa estão errados?
Não.
Se o Estado é incapaz de atender o que manda a lei, viabilizando as vagas adequadas, essa parte da culpa é só do Estado. Essa parte da culpa não é do traficante nem do homicida, embora, claro, seja o fim da picada um bandido estar em casa quando deveria estar na cadeia. Para que isso se resolva, é o Poder Executivo, e não o Judiciário, que precisa agir imediatamente. Mas candidato nenhum ganha voto prometendo vaga em presídio – muito menos em salas de Estado-Maior. Por quê? Porque a sociedade se lixa para isso. Se lixa, mas se revolta quando um assassino caminha livre na Borges de Medeiros.
Por favor, vamos cobrar de quem deve ser cobrado. Presídios, governador Sartori! Presídios, presidente Temer! Façam alguma coisa pelo Rafael!