É curiosa e polêmica a análise de Michael Shifter, do Diálogo Interamericano, sobre a ascensão de Donald Trump e o exercício desgastante do poder por parte de governantes de linha mais liberal – na América do Sul, são os casos mais notórios do brasileiro Michel Temer e do argentino Mauricio Macri.
Em um continente atingido por dois anos de recessão, a mística socialista e as políticas de redistribuição foram superadas por uma realidade marcada pelos erros de alguns líderes, sem sucessores à vista. Disso, todos sabemos.
Só que... o que pensa Shifter, conforme entrevista dada para a AFP?
– Se Trump tentar restaurar uma estratégia hegemônica na América Latina, com um tom e estilo agressivos, isso provocaria uma reação em toda a região, não apenas nos países de esquerda.
Diz ele que isso pode levar ao surgimento de líderes da esquerda no continente.
Seria, nas suas palavras, um "renascimento" da esquerda.
Veja bem: o presidente equatoriano, o esquerdista Rafael Correa, já considerara em outubro que a chegada de Trump seria "melhor para a América Latina", lembrando que a rejeição à administração de George Bush permitiu "a chegada de governos progressistas" durante seu mandato (2001-2009).
São visões curiosas.
Num primeiro momento, o que se vê é que os governos de esquerda terão que enfrentar novo desafio: a cegada de Trump à Casa Branca.
Em tese, seria ruim.
Na visão da maioria dos especialistas na região, ainda é muito cedo para falar de uma possível "ameaça Trump", já que o magnata parece não ter a América Latina entre suas prioridades, com exceção do tema migratório.
Por ora, o que se tem é que, quase 20 anos depois de conquistar o poder na América Latina, a esquerda regional necessita de uma autocrítica e deverá encarar um futuro imprevisível com a posse de Trump.
E também estarão sem um de seus maiores símbolos: Fidel Castro, que inspirou e apoiou ex-guerrilheiros e líderes sindicais que chegaram ao poder nos anos 2000, como Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff no Brasil, José Mujica no Uruguai ou Evo Morales na Bolívia.
Sob a orientação de Lula e do falecido Hugo Chávez, na Venezuela, uma esquerda heterogênea tomou o poder em toda a América do Sul, com exceção da Colômbia, e com avanços na América Central.
Mas, no momento da morte do pai da revolução cubana (em 25 de novembro), aos 90 anos, muitos presidentes esquerdistas já tinham caído.
Eleições presidenciais no Peru e na Argentina, referendo na Bolívia, legislativas na Venezuela: a esquerda acumula derrotas nas urnas e teve de assistir impotente ao impeachment de Dilma Rousseff, acusada de maquiar as contas públicas. E, em 2017, o grupo deve se reduzir ainda mais: Correa não quer um terceiro mandato, enquanto a chilena chilena Michelle Bachelet se prepara para deixar o poder com um balanço de escândalos, promessas não cumpridas e uma popularidade inferior a um dígito.
Reveses que enfraqueceram esquerda
Para Shifter, dois fatores foram determinantes para o enfraquecimento da esquerda: a queda dos preços das commodities que sustentaram esses governos e um desejo natural de mudança diante e episódios de corrupção.
Também houve a perda de influência de Cuba, referência histórica da esquerda do continente, que enfrenta o impacto da grave crise atravessada por seu principal aliado e fornecedor de petróleo com facilidades de pagamento: a Venezuela chavista, em profunda crise socioeconômica e rompimento institucional que torna diálogo uma expressão expulsa dos dicionários locais.
Ainda em meio a essa situação e sem fazer grandes concessões, Cuba teve de iniciar uma aproximação histórica com os Estados Unidos que realçou sua imagem perante o resto do mundo.
Mas a ilha já não é essencial para o continente, e os líderes da revolução socialista vitoriosa em 1959 terão que se concentrar em dois grandes desafios: a reforma de um modelo econômico obsoleto e a transferência de poder do presidente Raúl Castro à nova geração, esperado para dentro de 15 meses.
O status de Cuba, por isso, está em "declínio", opina o ex-diplomata Paul Webster Hare, professor de Relações Internacionais da Universidade de Boston.