A situação na Venezuela chegou a um ponto extremo e irreversível de ruptura entre poderes, instituições e forças políticas. Uma crise institucional que se consolida ao lado de uma crise socioeconômica marcada pelo desabastecimento de 80% dos produtos básicos, inflação mais alta do mundo e violência comparável à de países que vivem em situação de guerra.
A reação externa é forte. Entidades como a Organização dos Estados Americanos (OEA) falam que se consolidou uma ruptura no país. O líder da oposição venezuelana, Henrique Capriles, afirmou na noite de ontem que a suspensão do processo de referendo revogatório do mandato do presidente Nicolás Maduro é um "golpe de Estado", e convocou os venezuelanos a "restituir a linha constitucional" - e, para tanto, será realizada uma série de manifestações.
- Na Venezuela ocorreu um golpe de Estado, não se pode qualificar de outra forma. Chegou a hora de defender a Constituição da República Bolivariana da Venezuela. Temos que restituir a linha constitucional - declarou Capriles, na primeira reação da opositora Mesa da Unidade Democrática (MUD).
A oposição venezuelana convocou mobilização para a próxima quarta-feira em todo o país, para rejeitar a suspensão do processo de referendo revogatório.
- Na quarta-feira será o início de uma mobilização, em todo o país, e vamos tomar a Venezuela de ponta a ponta, com todo o povo mobilizado para restituir a linha constitucional - disse Capriles em entrevista coletiva.
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O porta-voz da MUD, Jesús Torrealba, disse: que "o governo quer violência ou submissão" e falou em "resistência pacífica".
- Nossa proposta vai ser a da coragem cívica, a da resistência pacífica. Um país em ditadura deve lutar de forma ousada para que haja voto.
O Conselho Nacional Eleitoral (CNE), ao qual a oposição acusa de ser aliado do governo, assim como a Justiça (o "escritório de advocacia do chavismo"), justificou a decisão de paralisar o referendo revogatório, acatando a sentença de tribunais penais de cinco Estados, que anularam por fraude uma primeira coleta de assinaturas de 1% do colégio eleitoral.
A MUD estava certa de que superaria os 20% de assinaturas exigidos, em meio a um crescente mal-estar popular com a grave crise econômica que castiga o país petroleiro, com uma aguda escassez de alimentos e medicamentos, e uma inflação que o FMI estima em 475% este ano e mais de 1.000% para 2017.
O presidente, eleito em abril de 2013 após a morte de seu mentor, Hugo Chávez, e cujo mandato termina em janeiro de 2019, enfrenta uma impopularidade de 76,5% e 62,3% votariam para revogá-lo, segundo a empresa Datanálisis.
- O governo empurra para um cenário muito perigoso e de aumento da crise - advertiu Capriles, contra quem uma corte proibiu a saída do país, assim como Torrealba e outros seis opositores, acusados de suposta fraude.
O CNE já tinha advertido que, mesmo que fossem reunidos os 20% de assinaturas, o referendo seria realizado em fevereiro ou março de 2017. Tarde demais para a oposição, pois neste caso, segundo a Constituição, o presidente revogado cede o poder ao seu vice, sem convocação de novas eleições. E o vice, na Venezuela, é escolhido pelo presidente a qualquer momento, como um ministro. Maduro poderia escolher um "laranja" e continuar governando.
Mas a oposição estava confiante em que uma pressão popular maciça pelo referendo obrigaria o CNE a realizá-lo este ano e conseguir, assim, estabelecer as eleições antecipadas - com a vitória oposicionista dada como certa.
- Não poderão adiar a mudança que este país pede - acrescentou Torrealba.
A paralisação do processo de referendo foi qualificada de "rompimento democrático" pelo secretário-geral da OEA, o uruguaio Luis Almagro, até há pouco chanceler de José Pepe Mujica.
"Hoje estamos mais convencidos do que nunca do rompimento democrático na #Venezuela. Chegou a hora de adotar ações concretas @OEA–oficial", escreveu Almagro no Twitter. "Apenas as ditaduras despojam seus cidadãos dos direitos, ignoram o legislativo tem presos políticos", disse Almagro.
A decisão provocou uma sequência de tuítes da parte de Almagro, que tinha alertado que Maduro se tornaria um "ditadorzinho" se impedisse o referendo revogatório."Deixar o povo da #Venezuela sem direitos eleitorais é de manifestou deixar sem legitimidade de origem a @NicolasMaduro", escreveu. Em outro tuíte, acusou o CNE "deixar o povo da #Venezuela sem direito a se expressar" e negar "seu direito constitucional de revogar em 2016" a Maduro.
Ressalva importante: Almagro não é um oponente contumaz de governos esquerdistas em geral. Além de ser ele próprio um homem de esquerda, no episódio que resultou no impeachment da presidente Dilma Rousseff, ele defendeu a então presidente brasileira e se opôs a Michel Temer.
Os Estados Unidos acusaram o CNE de "polarizar" e tentar "bloquear" uma saída democrática à profunda crise política na Venezuela.
"Pensamos que esta decisão é indicativa da polarização do Conselho", destacou o porta-voz do Departamento de Estado, John Kirby, com relação ao CNE.
O porta-voz sublinhou, em nota, que o CNE "está sendo usado para bloquear o exercício pelo povo venezuelano de seu direito constitucional e democrático a determinar a direção do seu país". "Estamos profundamente preocupados com a decisão", disse Kirby, destacando que os venezuelanos enfrentam "desafios" humanitários, políticos e econômicos "cada vez mais severos".
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A suspensão do processo de referendo revogatório contra Nicolás Maduro marca o ponto mais alto da crise venezuelana, que começou em 2014, com a queda nos preços do petróleo e a consequente deterioração econômica.
Leia os principais tópicos:
+ O presidente Hugo Chávez, fundador da chamada "revolução bolivariana" e padrinho de Maduro, morreu de câncer em 5 de março de 2013.
+ Após ser reeleito, em 7 de outubro de 2012, devia ter assumido em 10 de janeiro de 2013, mas teve que deixar o governo nas mãos de seu vice-presidente, Maduro, enquanto se submetia a tratamento em Cuba.
+ Em 14 de abril de 2013, realizaram-se novas eleições. Maduro venceu com 1,5 ponto de diferença Henrique Capriles, principal impulsionador do revogatório.
+ Assim que foi empossado, Maduro denunciou uma "guerra econômica" da oposição e de empresários para derrubá-lo.
+ A época das vacas gordas passava a ser uma lembrança no país que tem as maiores reservas de petróleo do mundo e que recebeu pela exportação do ouro negro uma fortuna entre 2004 e 2015: 750 bilhões de dólares.
+ O preço do petróleo caiu 50% em 2014, mas mesmo assim, a média foi de 88,42 dólares o barril, longe dos 33,81 dólares deste ano. A queda da renda gerou cortes drásticos das importações.
+ Em um país onde o petróleo aporta 96% das divisas e que é dependente das compras externas, a crise econômica inflamou as tensões políticas e o descontentamento.
+ Escassez, inflação e ruasAté então cíclica e concentrada, a escassez de comida, remédios e insumos para a indústria disparou, em meio a um ferrenho controle dos preços e do câmbio.
+ A par da deterioração da qualidade de vida, o setor radical da oposição, liderado por Leopoldo López, tomava as ruas para exigir a renúncia de Maduro, em protestos que deixaram 43 mortos entre fevereiro e maio de 2014.
+ O governo voltou suas baterias contra o "golpismo". Acusado de incitar à violência, López foi condenado a quase 14 anos de prisão em setembro de 2015. Mais de uma centena de dirigentes políticos estão presos atualmente.
+ Enquanto isso, a inflação subia sem controle: de 68,5% em 2014, saltou para 180,9% em 2015, a mais alta do mundo. Para 2016, o Fundo Monetário Internacional (FMI) projeta 475% e 1.660% em 2017.
+ Simultaneamente, a economia continuava em queda vertiginosa: após um crescimento de 1,3% em 2013, em 2014 encolheu 3,9% e no ano passado, 5,7%. Para 2016, o FMI prevê uma queda de 10%.
+ A desvalorização também se tornou incontrolável. Em junho de 2015, um dólar valia 400 bolívares no mercado paralelo, referência para a fixação de muitos preços; hoje, custa 1.200.
+ Conforme Maduro, à queda da renda do petróleo se soma um boicote promovido pelos EUA para fechar o crédito internacional à Venezuela.
+ A crise econômica marcou as eleições legislativas de 6 de dezembro, quando o chavismo sofreu seu pior revés em 17 anos de governo, ao perder de forma esmagadura o controle da Assembleia Nacional.
+ A coalizão Mesa da Unidade Democrática (MUD) saiu, então, em busca de um mecanismo para tirar Maduro do poder, escolhendo o referendo; enquanto via diminuir seus poderes legislativos por decisões do Tribunal Supremo de Justiça (TSJ), que anulou praticamente todas as suas decisões.
+ Em 20 de outubro de 2016, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) - acusado pela MUD de servir ao chavismo - suspendeu o processo assim que tribunais de vários estados tornaram sem efeito, alegando "fraude", a coleta de assinaturas com as quais solicitou-se a consulta em meados deste ano.
+ A medida foi tomada quando a MUD se preparava para coletar, na próxima semana, outros quatro milhões de assinaturas necessárias para convocar eleições. Mas a suspensão do processo o deixou à beira da sepultura.
+ Dias antes, o CNE anunciou também o adiamento para 2017 das eleições regionais, previstas para este ano.
+ E assim estamos, além do caos socioeconômico vivido pelo país sul-americano, em uma crescente crise institucional.