Em uma cena do filme Brazil (Terry Gilliam, 1985), é retratado um futuro distópico no qual os personagens comiam uma gororoba indiferenciada, mas o faziam de olho em uma imagem sugestiva do sabor e do glamour que deveriam sentir. Junto aos pratos, cartazinhos mostravam iguarias refinadas, que eles olhavam enquanto enterravam seus talheres em um mingau disforme. O prazer do paladar dependia da propaganda do produto, mais do que de sua natureza. Nunca esqueci essa cena, na qual me senti interpretada.
Admiro os verdadeiros gourmets, donos de paladar refinado, capazes de diferenciar sutilezas de vinhos, cafés, cervejas, pratos. Infelizmente, para mim, as categorias gosto e não gosto e forte e fraco dão conta de quase tudo. Em relação à percepção do sabor, acredito fazer parte de uma maioria, influenciada por rótulos, propagandas ou, no melhor dos casos, pela recomendação de amigos ou outros iniciados nas artes culinárias.
Não me orgulho da pobreza nos conhecimentos culinários – aliás, tenho tentado ser cada vez mais consciente disso, com decorrentes ganhos para o paladar. Todo tipo de alienação causa dependência dos criadores de bulas, etiquetas, propagandas. Desatenta, acabo pagando pelo prestígio social de uma marca, pela embalagem que, com o perdão do trocadilho, me embala. Se precisarmos desses textos, que funcionam como acalanto, que acolhe e dá sentido à vida, é porque ela arrisca tornar-se tão amorfa e insossa como o mingau do filme.
Aos espaços já ocupados pela propaganda acrescenta-se agora uma povoada geração de videoblogers. Há entre eles gente que admiro, trabalhando na construção de linguagens, como Julia Tolezano, conhecida como "Jout Jout prazer". Sem eludir nenhuma polêmica, ela empresta bom humor a temas densos como corpo feminino, sexualidade, feminismo e modos de vida. Por outro lado, há uma legião de gente que expõe sua vida insignificante e edita toscamente uma aparente espontaneidade que só consagra múltiplos clichês.
Entre tutoriais de maquiagem, videogame e outras dicas, que até podem ser úteis, a internet torna-se mais um meio a serviço da formatação de parâmetros rígidos de aparência, relacionamentos e banalização dos sofrimentos psíquicos e questionamentos. Vários desses "vlogers" têm milhares de, principalmente bem jovens, seguidores. Entre estes, muitos sentem-se estimulados a fazer o mesmo, relatar suas ideias recém-nascidas, que mal ganharam alguma penugem, em pequenos filminhos esperando ansiosamente pelos likes. Está bem, sem preconceitos, nada mais do que um novo e poderoso meio de comunicação ao alcance de qualquer celular ou computador caseiro.
Em meio a tanta falação servida crua, perde-se o tempo de elaboração, do preparo e cozimento que faz de uma narrativa qualquer uma iguaria. Ainda não sou boa com pratos, mas sei degustar um bom texto, cuja densidade e precisão requerem um trabalho calmo, sem a pressa de cair nos braços dos likes.
A literatura, mesmo sob a forma leve e cotidiana da crônica, pode até encontrar sua versão vlogueira e internética, mas não precisa abrir mão da beleza com que se pode contar até mesmo o que é mais mínimo. A poesia, mesmo na música, sua versão mais popular, depende da concisão das palavras, mágicas em seu potencial de reverberar sentidos.
Não tenho nada contra a proliferação da nossa capacidade de expressão em milhares de novos e riquíssimos espaços, tenho é contra essa triste associação entre tagarelança e discursos feios, vazios e mensageiros de normatizações. Cada vez mais enxergamos nossa vida como um mingau amorfo de sentimentos e ideias, enquanto gente com pouco a dizer nos coloca à frente um cartazinho que substitui nossos pensamentos. Faço votos que, com a maturidade, entre esse monte de jovens tão eloquentes, nasça alguma forma de arte.
O sentimento de felicidade provém das palavras. Ele depende de termos a capacidade de perceber e descrever (mesmo que só em pensamento) o que estamos vivendo. Qualquer prazer ou júbilo será tanto maior quanto for a riqueza da narrativa.
A mediocridade é sempre triste.
Nota da redação: a psicanalista Diana Corso interrompe a publicação de suas colunas quinzenais no caderno Vida para dedicar mais tempo a projetos pessoais, como um livro que está finalizando.