A globalização trouxe a facilidade de viver em qualquer lugar. Os jovens, em algum momento, acabam pensando seriamente em partir – é claro, se tiverem facilidades econômicas e formação para tanto. Mesmo os mais velhos ficam namorando o aeroporto como saída para o Brasil. Abastados emigram para Miami, estudiosos para a Europa. Entendo como é difícil, quando se tem alternativa, conformar-se à crueza da nossa violência, associada à pobreza da nossa educação. Porém, posso avisar: ser estrangeiro é doloroso, nunca nos sentimos plenos quando temos que nos expressar, pelo resto da vida, em uma língua que adquirimos depois de crescidos.
Quando falo, não se nota que sou estrangeira. Nasci, passei meus primeiros anos e me alfabetizei no Uruguai, cheguei aqui aos seis. Línguas aprendidas na infância entram fácil, por isso falo igual aos nativos. Mas se, para os de fora, minha condição estrangeira é imperceptível, o mesmo não ocorre por dentro. Ainda conto e praguejo em espanhol.
A língua mãe nunca sai de nós, reservando para si uma margem de emoções que só conseguimos sentir nela, assim como uma capacidade de expressão que também não a transcende. Recentemente, em um sarau literário, me propus a ler um texto em espanhol. Claro, era Mario Benedetti, meu conterrâneo, cuja prosa é um convite à naturalidade. Porém, só isso não explica a emoção que senti ao ouvir minha própria voz interpretando-o com surpreendentes entonação e capacidade dramática. Não recordo de ter jamais me expressado assim em português, minha língua de adoção. O mesmo ocorre com a capacidade de escuta: tenho algumas dificuldades com sotaques em português, custo a entender os filmes brasileiros sem legenda, em Portugal me sentia quase como na Alemanha.
O cérebro das crianças não resiste tanto à entrada do novo e elas deixam-se levar pela música de cada idioma. Quando entram em contato com uma língua antes da adolescência, fazem como os bebês ao aprender a falar: imitam o som, apesar de ainda não lhe dominarem as palavras, e depois vão preenchendo aquela melodia com uma letra. Uma língua será tanto mais íntima quanto mais fizer parte da nossa história pessoal, especialmente se a escutarmos falada por pessoas que marcaram nossa identidade.
Na cerimônia de abertura da Olimpíada, fiquei, como a maior parte dos brasileiros, tocada ao escutar nosso hino executado por Paulinho da Viola. Esse sentimento nutriu-se das tantas vezes que hasteamos a bandeira na escola estadual da minha infância. Crianças são esponjosas, não somente à aquisição da língua, mas também da cultura.
É claro que adultos podem chegar a falar muito bem, quase sem sotaque, e também desenvolver grande empatia com o país que os tiver recebido. Podem amar o novo lugar e sentir-se satisfeitos com a escolha de partir que fizeram. Porém, cabe avisar algo que só se sabe quando fala-se uma língua e pensa-se em outra: ser estrangeiro é nunca sentir-se totalmente em casa.
O agravante é que, depois de ter ido embora e adaptar-se realmente ao novo lar, o antigo também deixa de ser familiar. Ao voltar, as memórias acolhem, mas o presente, as novas realidades do lugar, suas gírias, expressões e histórias já não nos são familiares. Países, cidades, bairros e pessoas não ficam parados no tempo à nossa espera. A condenação que pesa sobre quem vai embora é a de tornar-se uma espécie de cigano. Podemos acampar e dar jeitos de viver bem em muitos lugares, mas ser estrangeiro é uma condição de excentricidade sem volta.
O aeroporto pode até ser uma boa saída, mas é preciso acrescentar à bagagem a disposição para viver ao som de uma música que nunca será a nossa. Ser estrangeiro é carregar em si os restos de um exílio incurável.