É difícil sair ileso do filme Julieta, de Pedro Almodóvar. Como mulher, como mãe, consigo sentir a força da dor e principalmente da culpa da personagem que perdeu a filha. Não se trata de uma morte, mas de um rompimento absoluto, prenhe de acusações dirigidas à mãe. São acusações do tipo bem comum, que já fizemos ou recebemos: por não ter sido suficientemente presente, atenta. Por isso, todas nós sentimos como se esse drama fosse nosso: um dia chegaria a conta pela mulher ou pela mãe que não soubemos ser.
Julieta, como a de Shakespeare, está igualmente fadada a desencontrar-se do amor e esbarrar na morte. Viu seu eleito ser tragado pelo mar, mas não morreu de amor. Não era essa a maior dor que a aguardava: ela é uma mãe destinada a sofrer o abandono da filha. O filme é inspirado em três contos do livro A Fugitiva, de Alice Munro. A partir deles, Almodóvar imprimiu suas cores fortes à história, mas nem por isso lhe adulterou a essência. Livro e filme tratam da sobrevivência a esse luto impossível, que é perder um filho que não morreu.
A filha de Julieta decide ir para um retiro espiritual, onde conclui que precisava romper com tudo, a começar pela mãe. Somente vários anos depois do sumiço, por acaso, chegam notícias do seu destino: vive em uma região retirada e tem vários filhos. Ao desaparecer, o único recado que deixou atrás de si consistiu em uma queixa: sentia-se solitária junto à mãe. O troco, o castigo que impôs a ela por essa suposta omissão, foi o abandono.
Estar sozinho é um inferno quando significa ser condenado à companhia constante de uma falta. Aparentemente, a filha sentia-se também assim em presença de sua mãe. Na história, essa insatisfação é tudo o que sabemos dela.
A autoacusação constante faz parte da feminilidade. Julgamos que deveríamos ter acolhido mais, escutado mais, exigido menos, jamais ter outras prioridades. É como se aqueles a quem amamos estivessem ainda ligados a nós por um cordão, já não umbilical, mas ainda vital. O que o filme ressalta é o quanto nós, mulheres, acabamos dependendo desse tipo de relação. A filha de Julieta corta radicalmente esse cordão, e quem quase morre é a mãe.
Um dos motores dessa culpa está em considerarem-se imprescindíveis. O problema é que essa dependência acabou sendo vital para nós, tanto que o desmame costuma ser mais sofrido para a mãe do que para o bebê. Essa disponibilidade absoluta, como se os outros ainda habitassem nosso corpo, é herdeira de uma missão que já não é a única das mulheres, mas resta enquanto terreno conhecido.
Nessa história, a culpa permeia outras relações além da maternidade. A perda inaugural de Julieta nada tem a ver com a filha, mas sim com o pecado capital da desatenção. Ainda jovem, ela estava em um trem, e um senhor desconhecido sentou-se à sua frente puxando conversa. Incomodada, ela tentou retomar a leitura, mas ele foi insistente, sugerindo que poderiam fazer-se um pouco companhia. Infelizmente, tal rejeição foi fatal para a esperança dele que, na primeira oportunidade, joga-se na frente dos trilhos: aquele tinha sido seu último apelo ao mundo. Na sequência, após uma discussão em que ela não conseguia perdoar o marido por uma antiga traição, ele, que era pescador, sucumbiu a uma tempestade. Teria ele corrido risco desnecessário influenciado pelo clima ruim da relação?
Culpa e culpa, por não escutar, por não perdoar, por não ser a mãe que a filha queria que ela fosse. Julieta revela-nos um drama tão contemporâneo das mulheres que nunca acham que estão onde, como e quanto deveriam. Se há algo que aprisiona, é nossa própria fantasia de uma mãe que esteja plena e completamente entregue à missão, essa que nunca seremos, mas que gostaríamos de ter tido. Resta-nos a pergunta: será que essa mulher atenta, disponível, magnânima, alguma vez existiu? Talvez seja ela mesma o fantasma do qual, por meio da culpa, não conseguimos nos separar.