A esquerda latino-americana está passando por uma desconstrução e perda de paradigmas. O momento é difícil para pessoas que sustentavam o discurso generoso e humanista de dividir a renda altamente concentrada da região. Muito do que foi construído sofre severas avarias. O bordão "Um novo mundo é possível", do Fórum Social Mundial, aqui em Porto Alegre, provoca desconforto em quem procura esse novo mundo e encontra situações como a da Venezuela.
Este colunista indica, abaixo, dois erros básicos de líderes que representariam a esquerda regional. Esses equívocos abalaram sonhos. Os líderes são Hugo Chávez e Luiz Inácio Lula da Silva. Quanto a Chávez, este colunista ressalva: seria ele, realmente, um esquerdista?! Não seria, muito mais que isso, um militar à moda antiga que assumiu o poder venezuelano e se aproveitou da onda de petróleo a preço alto para conquistar simpatias e poder? Penso muito nisso.
É perfeitamente defensável que Chávez tenha chegado ao poder e redistribuído a renda antes concentrada em uma elite chamada de "parasitária" por muitos. Ok. Mas e depois? Um homem de esquerda, na Venezuela, um senhor de 77 anos, respondeu-me com esta pergunta: "E depois?" E depois o petróleo, a grande praga do século 20 (essa observação é minha, evidentemente), tornou-se ainda mais concentrado, e a Venezuela ficou com o pincel na mão.
Vamos, então, aos dois erros básicos:
1) Lula passou décadas se referindo aos 300 picaretas que chafurdavam no Congresso. A frase até entrou em letra dos Paralamas do Sucesso. Nós todos a cantávamos. Pois bem, hoje vemos com mais clareza: Lula tinha a obrigação de fazer a reforma política e jamais poderia ter cedido ao velho esquema de fazer política, que tanto contestou. Muitos petistas, alguns deles discretamente, estão profundamente desapontados com o líder petista. Muitos creem que Dilma Rousseff, que teve lá seus erros, paga a conta do erro de todos os erros.
2) Chávez chegou ao poder enfrentando uma oligarquia que sugava os dividendos petrolíferos. O petróleo a preço superior aos US$ 100 foi um atrativo para quem queria conquistar a massa. Ele tinha tudo na mão, em especial tinha uma empatia imensa com os venezuelanos. Por que não aproveitou a chance para, além redistribuir a renda, ter diversificado a produção e enterrado de vez a chamado "petroleodependência"? Era obrigação de Chávez ter feito isso. A consequência foi uma política econômica sem qualquer sustentabilidade, em todos os sentidos. E o herdeiro, Nicolás Maduro, foi outro erro, grande, mas menor. Maduro nem empatia tem para mitigar tamanho desastre.
Talvez a indigência intelectual em voga não permita, mas é evidente que a esquerda chora. Os mais implacáveis adversários que elas tiveram foram seus próprios líderes. Um cedeu à tentação do jogo político fácil, de conceder favores a pulhas, sem perceber que muitos Delcídios anteontem eram inimigos - confiar neles?! Outro também cedeu ao caminho fácil de distribuir benesses sem enxergar o dia de amanhã, quando o preço do ouro negro caiu violentamente.
E o amanhã chegou com o sabor azedo do desencanto.
Esse sabor terrível eu senti ao ver pessoas morrendo de fome e de doença, sem produtos básicos, na Venezuela que deveria ser um exemplo. Caracas me fez quase chorar de profunda tristeza por ver a crueza da vida real em frangalhos. É muito sofrimento. E não adianta você dizer que tudo não passa de um grande complô dos empresários com o governo dos Estados Unidos - sim, aquele país em que o presidente, o democrata Barack Obama, alinhava a reaproximação com a socialista Cuba. Obama quer mais é conversar! E os empresários? Como sempre, querem o seu lucro. Não costumam sair por aí rasgando dinheiro.
Que triste, insustentável e indefensável amanhã.
A esquerda generosa e humanista que existe em muitos políticos precisa se reerguer para recuperar o terreno perdido em suas próprias armadilhas.