Para Nanni Rios
"Deixa o ninho para te enriqueceres com os costumes de outros lugares, e aí ouvires palavras nunca antes proferidas. Expõe o corpo ao vento e à chuva, porque, para ser verdadeiramente educado, é preciso te expores ao outro, esposar a alteridade e renascer mestiço."
Michel Serres
Você se revela de muitas maneiras e desde sempre diz ao mundo quem é de mil formas diferentes. Algumas sutis, outras nem tanto.
Só que o mundo parece não se importar muito com o que você manifesta, o mundo na verdade já se encarregou de colocar você em uma caixa no minuto em que você nasceu e imediatamente colou nela um rótulo.
Você vive dentro da caixa X, na prateleira Y do setor Z.
Dessa forma, está tudo dito. Nem você nem os outros precisam pensar muito sobre o conteúdo da caixa. Está dado. Está tudo organizado, catalogado. Está tudo sob controle. Teoricamente.
Com o tempo, você aprende como se sentir confortável dentro do seu cubículo e até como empacotar sua identidade de formas e em combinações diversas divididas em outras microcaixas, dentro da caixa, até finalmente sentir que pertence a alguma coisa e, assim, conseguir carregar seus rótulos, mesmo herdados, com um certo orgulho.
Só que existe uma parte sua que nunca encontra um lugar, algo que se debate entre categorias que na verdade nada têm a ver com você e que nunca lhe fizeram muita justiça. Provavelmente algo herdado, mas que já não lhe pertence.
Você estica o pescoço e na ponta dos pés olha para além das paredes da caixa tentando entender o que acontece nas caixas ao redor e se as pessoas que nelas habitam estão à vontade. E então, com sorte, percebe alguma inquietação por trás de cada rótulo. E é nesse momento que você entende que ainda somos todos estranhos uns aos outros e equivocadamente pensamos que sabemos o que outro pensa, e até o que o outro sente, como se o único que importara fosse a caixa a que cada um pertence.
E então por um minuto você ousa pensar:
O que aconteceria se rompêssemos essas paredes?
O que aconteceria se misturássemos tudo e, desobedientes, escrevêssemos novos rótulos à mão e com nossas próprias palavras? Ou, ainda melhor, o que aconteceria se não existissem caixas e fôssemos obrigados a olhar em torno, e arriscar perguntando a pessoa ao lado:
– Como é ser você?
E então, ter coragem suficiente para admitir que ainda não sabemos a resposta.
Talvez isso significasse que finalmente chegamos a este mundo e, ao eliminar as caixas, estivéssemos por fim à vontade em nossa própria pele. E quem sabe um dia poder até olhar pra trás e pensar: como pudemos viver tanto tempo na mesma casa sem nunca realmente termos sido apresentados!?
Está mais do que provado: estamos entrando na era da transparência. Nela, se ainda houver caixas, elas serão de vidro.
Tudo e todos serão revelados e nada mais estará sob controle. Não haverá outra alternativa se não aprender a olhar ao redor, a olhar os outros e então, convivendo com as diferenças, aprender a valorizá-las.
Mas, é claro, sempre haverá os que prefiram permanecer em seu cubículo envidraçado e blindado.
*Inspirado em The Dictionary of Obscure Sorrows de J. Koenig