Se alguma época da vida se assemelha a um casulo às vésperas de ejetar seu conteúdo, essa é a do final da puberdade. A adolescência já engloba as primeiras coisas que ocorrem do lado de fora. Os adolescentes têm amigos e experiências eróticas que, mesmo quando parcos, são suficientes para ignorar que há uma família ansiosa pelo seu destino.
Para eles, uma história pessoal começou a acontecer, o que significa que já conseguiram atravessar a soleira da porta de casa. Antes disso, estão de pé, apoiados no marco, meio tontos, tentando ficar surdos aos sons domésticos que, às suas costas, chamam para ficar. Nesse momento, os olhos estão voltados para fora, mas ainda não têm forças para dar o passo libertário que os levará a partir.
O tempo e o lugar desse impasse seriam o Ponto Zero, título do filme de José Pedro Goulart, que retrata o momento da vida em que esse passo acontece.Você lembra? Ir e vir da escola, ser extremamente tímido, sentir-se derretendo quando é preciso falar na frente de todo mundo. Desejar e admirar gente que sequer sabe que se existe, provavelmente mais velha. Com sorte, não apanhar de uns caras mais fortes.
Ser objeto de olhares de desprezo ou sentir-se transparente, excluído em todos os lugares. Masturbar-se sempre que possível. Encontrar alívio no ferrolho do computador: jogos, música, filmes, seriados, animes, mangás, para alguns poucos, leitura. Dormir muito. Responder com monossílabos. Começar a olhar a família como se não se estivesse no recinto, mas sentir urticária até com as vozes deles. Sentir-se preso. Esconder-se dentro do cabelo e de moletons folgados. Espinhas e cabelo sebento. Dormir de roupa, acordar e sair sem se trocar, de estômago vazio. Comunicar-se, no máximo, com um amigo, talvez virtual.
Como essas experiências, o filme é de intensa coloração dramática, contrastando com a quase ausência de ação da vida de um garoto de 14 anos. Ênio é, como todos da sua idade, quase mudo, feito só de olhos que tudo enxergam, embora sem maior expressividade. Olhares que não mostram o que se pensa. Ele tem a falsa quietude de um vulcão, por fora pedras, por dentro a lava borbulha.
Quando finalmente sai, sua jornada é de solidão e atos desesperados. O filme é quase alegórico, não importa muito o que de fato acontece, tampouco eu faria aqui a descortesia de revelar. O certo é que, passado o patamar dessa primeira aventura, não há volta.
Não são necessários dragões, zumbis, duendes, mutações ou batalhas épicas para que uma história tenha efeitos metafóricos. Vivências psíquicas são suficientemente fantásticas para evocar significados máximos em eventos mínimos. A magia do filme de Goulart é levar-nos para dentro da cabeça de um quase adolescente que, por fora, pareceria insignificante e imóvel. Por meio dos seus olhos observamos a falência do casamento dos pais, a distância hipócrita do pai, as chantagens emocionais da mãe, enquanto sua irmã adolescente fala ao telefone e vive tranquila, alheia ao cenário de brigas e sofrimento. Ênio é quieto, tenta minimizar sua presença ao máximo. Esse recurso ao silêncio é mais verdadeiro, pois os pensamentos nessa época não são muito claros, mais feitos de sentenças breves, de desfeita e desprezo, do que de longos parágrafos.
Chega a ser cômica a representação dessa ausência de palavras do protagonista no filme: ninguém realmente escuta as pessoas dessa idade, elas são ignoradas ou destinatárias de sermões e monólogos. Todos lhes falam e nunca os ouvem, nem mesmo quando estão respondendo às perguntas que lhes são feitas. Ponto Zero é uma ótima experiência de dar visibilidade à mais injustiçada época da vida. Prensada entre a infância e a adolescência, a puberdade é uma aventura e tanto. Por isso, seu final é um drama que merecia um retrato como esse.