O perfil pragmático que o senador e chanceler interino José Serra diz estar disposto a imprimir no Mercosul deu as caras ontem à noite em Buenos Aires. Serra defendeu, em sua primeira viagem no comando do Itamaraty, que os integrantes do Mercosul tenham maior liberdade para negociar acordos bilaterais. Durante um dia intenso de diálogos, Serra se reuniu com a ministra das Relações Exteriores argentina, Susana Malcorra, com o ministro da economia, Alfonso Prat-Gay, e, por último, com o presidente Mauricio Macri.
– O Mercosul é uma união aduaneira. Não é uma zona de livre comércio, que é o que eu sempre defendi. O problema da união aduaneira é fazer acordos com outros países do mundo sem ser em conjunto. A nossa estratégia é flexibilizar isso. Às vezes um pode abrir a oportunidade e os outros vêm depois o chanceler em entrevista coletiva na embaixada brasileira, à noite.
A proposta seria permitir que um integrante do Mercosul estabeleça acordos com países de fora do grupo e os outros membros se somem posteriormente, de acordo com a experiência de cada um.
Questionado se o governo Michel Temer teria legitimidade para propor mudanças profundas no bloco, o tucano disse que "decisões têm de ser tomadas" e que há aval do Congresso. Ponderou que não via necessidade de grandes alterações no Mercosul antes do período de seis meses que pode durar o afastamento de Dilma Rousseff.
A busca de alternativas para reativar duas economias em recessão esteve no centro de reuniões de Serra com PratGay e, também, com Macri – conforme informação do jornal O Estado de S. Paulo. O intercâmbio comercial entre as nações caiu 42% entre 2011 e 2015, de US$ 39 bilhões para US$ 23 bilhões.
O governo de Macri costuma se dizer bastante preocupado na retomada da atividade econômica no Brasil, responsável por 40% do comércio internacional argentino. Nos primeiros quatro meses do ano, o déficit bilateral argentino triplicou e chegou a US$ 1,4 bilhão, em razão da queda no consumo brasileiro, segundo a consultoria Abeceb.
É importante que se diga: Macri se manifestou protocolarmente sobre o processo de impechment no Brasil. Disse acreditar nas instituições brasileiras. A chanceler Malcorra ressalvou que teme elementos "de gênero" na saída de Dilma e disse haver uma boa relação entre o presidente argentino e a presidente brasileira afastada. Este colunista apurou que Dilma mantinha uma relação, na prática, bem mais fluida com Macri do que com a ex-presidente Cristina Kirchner, supostamente alinhada a ela ideologicamente. Outro detalhe importante: Macri está tomado do mesmo pragmatismo que Serra e se reúne com as autoridades brasileiras sem maiores ponderações.
Do salão em que Serra falava, ouviam-se apitos de manifestantes contrários ao governo Temer. Os protestos, que ele classificou como irrelevantes, o acompanharam desde sua chegada a Buenos Aires, na noite de domingo, quando 35 ativistas jogaram bolinhas de papel contra seu carro. Ontem de manhã, algo como 150 pessoas exigiam a renúncia de Temer e chamavam o ministro de golpista. Serra teve de entrar por uma porta lateral no palácio San Martín, a suntuosa sede da chancelaria argentina.
Entre as diretrizes da nova política externa brasileira, anunciadas na semana passada, Serra colocou a relação com a Argentina. Em seu discurso de posse, ele citou "referências semelhantes para reorganização da política e da economia", ao se referir ao governo de Macri, eleito no ano passado por uma coalizão de centro-direita. Serra salientou sua intenção de "despartidarizar" o Itamaraty, algo que Susana Malcorra também assumiu como compromisso ao tomar posse em dezembro como chanceler, após 12 anos de administração kirchnerista.
A situação da Venezuela, que criticou o processo de impeachment brasileiro e tem sido alvo frequente de críticas de Macri, também esteve na pauta do chanceler brasileiro. O presidente argentino pressiona Caracas pela libertação de presos políticos e já ameaçou pedir a suspensão do país do Mercosul. Questionado se exigiria a punição ao país governado por Nicolás Maduro, Serra disse defender um processo de mediação. Ele ressaltou que a turbulência brasileira impediria o país de exercer esse papel de intermediário.
Serra chegou à Argentina já com a definição do novo embaixador brasileiro em Buenos Aires, Sérgio França Danese, conforme o Estado de S. Paulo. Ele ocupa atualmente a função de secretário-geral do Itamaraty, segundo posto na hierarquia da instituição, cargo que será exercido por Marcos Galvão.