Julho de 85, estava em uma comemoração da família da minha mulher em Buenos Aires. Um senhor de idade soube que eu era brasileiro e puxou conversa. Havia um sabor raro em seu português fora de moda. Ele morara alguns anos no Brasil e me desfilava palavras extintas, gírias esquecidas, sobre uma Bagé que tampouco então existia. Sons e paisagens antigos, aliados a um português alheio a todos, nos fizeram uma ilha no recinto.
Éramos, cada um a seu modo, ímpares. Eu era o único não judeu, ele o único não parente. A idade não fazia obstáculo, algo dele percebeu minha nostalgia congênita, sempre pronta para o passado. A conversa girava sobre os anos 30 e seus dias dourados no Brasil. Até detalhes do campeonato gaúcho de 38, vencido pelo Guarany, escutei. A memória reconstruía o período áureo daquela faixa de terra que está no Brasil, mas pertence a um outro território, onde o centro gravitacional platino mostra sua força.
Mas o verão das lembranças de inopino tornou-se minuano. Sem querer, tocamos em uma farpa do passado ainda aguda. Um conterrâneo e amigo suicidara-se. Tantos anos depois, contava o trágico fim de Emanuel Zunz como se tivesse ocorrido ontem. Aquela história provavelmente já fora contada mil vezes, mas é daquelas que a repetição não gasta o gume. Suicídios são como um buraco negro que traga as representações. Os afetados nunca se recuperam de todo. Passam e repassam seus passos tentando saber o que tornaria o destino diferente.
Seu amigo portenho fugia de um litígio que lhe custou tudo. Injustamente acusado de um desvio financeiro, fora preso e perdera seus bens. Sua mulher não resistiu à tormenta e estava longe de sua única filha, que ficara em Buenos Aires. A humilhação da prisão, a infâmia e a derrocada financeira quebraram-lhe a espinha moral. Doía-lhe, sobretudo, ver sua filha, Emma, sobrevivendo como operária e com vergonha de seu sobrenome. Com veronal, pôs fim a seus dias.
Fomos salvos do abismo dessa reminiscência pelo vinho e pelo guefilte fish que chegaram. Depois, recuperado e constrangido, quis dar fim à história. Despiu os detalhes e fez filosofia. Disse que mentira atrai mentira e sangue cobra sangue. Foi econômico no epílogo desse caso que eu suponho ter tido um capítulo trágico a mais, envolvendo vingança. Adivinhando minha curiosidade, apenas me garantiu que, ao fim, Emma se saíra bem. Ele a visitava em San Telmo a cada tanto.
Cinquenta anos depois, quando a terra guarda quase todos os envolvidos e a Justiça já esqueceu o assunto, ele segue defendendo emocionado a memória do amigo derrotado pela maldade e ganância alheias. Já eu fiquei invejando aquela amizade irretocável, digna de um conto de Borges.