Não lembro exatamente o que estávamos filmando, mas lembro do momento em que a notícia correu rápido pelo estúdio: um furacão havia se formado no Atlântico e vinha direto em nossa direção. A previsão era clara, em menos de 48 horas o Katrina cruzaria a Flórida em direção ao Golfo do México. Com a filmagem cancelada, voltamos ao hotel. Éramos poucos brazucas, mesmo assim, ninguém conseguiu voltar pra casa, e os mais assustados acabaram voando para qualquer destino, ocupando os raros acentos disponíveis nos últimos aviões a deixar Miami.
Confesso que um misto de curiosidade e ignorância me paralisou. Ousei até duvidar da gravidade das previsões, a ideia de vivenciar um furacão parecia mais excitante do que ameaçadora. Afinal, estávamos nos Estados Unidos, o que de tão terrível poderia acontecer sem que algum Bruce Willis viesse salvar a pátria?
A verdade é que você só entende a dimensão de uma catástrofe natural após vivenciar uma. E quando acontece, não há super-herói nem superprodução, em IMAX ou 3D que seja sequer comparável.
Os grandes desastres no Brasil geralmente são causados pelos próprios brasileiros, um misto catastrófico de ganância e ignorância. A natureza em berço esplêndido descansa risonha em lindos campos e, talvez só por compaixão, nos poupa - ou poupava - de seus piores castigos. Afinal, quem precisa de desastres naturais quando já tem uma lama de incompetência dividindo o país?
O dia estava denso e as ruas vazias quando resolvemos sair pra dar uma volta. Tínhamos uma lista pra resolver na loja da Apple e fomos a um daqueles shoppings chiques ao ar livre. Pra nossa surpresa, éramos os únicos falando português, aliás, éramos os únicos, ponto. O lugar estava deserto e as lojas não só fechadas, como haviam colocado sacos de areia empilhados nas vitrines. Rolou um silêncio incômodo e alguém arriscou dizer que era melhor não vacilar e comprar comida. No supermercado, fomos surpreendidos mais uma vez: as prateleiras estavam vazias e havia racionamento de água.
Quando uma chuva esquisita com cheiro de mar e pingos graúdos começou a cair, estávamos de volta ao hotel. Não lembro o nome, mas era um daqueles arranha-céus em downtown Miami de cara pro mar. Se o Katrina vem do Atlântico, pensei, vamos assistir de camarote. Mas quanto entrei no quarto do trigésimo e pico, mal conseguia ver os prédios ao redor. Lá em baixo nas ruas vazias que pareciam maquete, outro choque de realidade: voavam umbrelones, placas, árvores, toldos, janelas, e os carros eram arrastados Entendi rapidamente que o grande perigo de um furacão são os detritos, ou dejetos, ou seja lá qual for a melhor tradução para 'debris', deadly by the way.
Adormeci assistindo as imagens de repórteres encapuçados amarrados em postes em meio ao vendaval e de ondas explodindo entre barcos nas marinas da costa da Flórida e acordei com o alarme de emergência, e o alerta para abandonar os andares altos. Antes de deixar o apartamento carregando apenas um abrigo, passaporte e dinheiro, pela janela vi que o mundo havia desaparecido numa grande nuvem e que o cordão da cortina balançava sistematicamente, como um pêndulo. Minutos depois, quando descíamos as escadas em meio a dezenas de outros hóspedes assustados e silenciosos, me dei conta em um flash-back que a chuva na janela não caía, cruzava da direita para a esquerda, na horizontal!
A violência de um furacão aumenta gradativamente à medida em que se aproxima, o que pode durar horas, mas sua fúria máxima só acontece no exato momento da passagem para o epicentro do redemoinho. É como atravessar uma parede e romper no vácuo: o olho do furacão. Nele, tudo cessa. Não há vento, não há chuva, apenas um silêncio repentino, como se alguém houvesse puxado o fio da tomada. Nesse momento você respira aliviado, mas só até entender que a parede do outro lado se aproxima e que tudo vai começar outra vez, ao inverso.
Algumas pessoas dizem que esse impacto pode ser comparado ao da entrada na atmosfera terrestre. É com certeza o momento mais tenso. Se a primeira passagem é um processo gradativo, a segunda chega de golpe. A espera é assustadora, e não há forma de prever quando vai acontecer.
No dia seguinte, helicópteros sobrevoavam a cidade virada ao avesso. Não havia luz, nem internet ou água, os celulares estavam descarregados ou sem serviço, os hospitais pediam doações de sangue e os primeiros números do Katrina chegavam na forma mais antiga de comunicação: o boca a boca. As pessoas ainda estavam catatônicas, mas uma rede de colaboração rapidamente começou a funcionar.
Qualquer semelhança não é mera coincidência.
A passagem do Katrina e seu day-after lembra muito o que aconteceu em Porto Alegre. Já o vazio, o vácuo e a espera silenciosa pelo pior a cara do Brasil.