Jornalista não deixa de sê-lo porque está em férias, pude constatar mais uma vez neste período de 15 dias longe do teclado do computador e do microfone. Tive a feliz surpresa de encontrar em minhas redes sociais um colorado nascido e criado na Restinga que hoje ganha a vida em Nova York. Everton Azevedo, 35 anos, mandou abraço lá do Queens, onde mora, e o convidei para participar comigo de uma transmissão.
Ficamos meia hora no ar. Este brasileiro negro e bem-sucedido me contou sua aventura nova-iorquina. Ao lado da esposa, Daniela, e do filho Paulo, foi para os Estados Unidos há quatro anos. Na coragem, disse ele, disposto a viver seu sonho, que hoje realiza com seu trabalho de translado de brasileiros do aeroporto de Nova York para a cidade.
Aliás, o serviço parou com o aeroporto fechado. Everton passou a fazer entregas a domicílio de comida, compras e remédios para manter o padrão. A esposa é dona de uma empresa de limpeza. Enfim, dois gaúchos porto-alegrenses negros e colorados que se estabeleceram na mais cosmopolita cidade do mundo e vivem agora em meio à pandemia e aos protestos pela morte de um homem negro por um policial branco. Neste domingo, a RBS TV põe no ar Inter x Barcelona, Mundial 2006. Everton não vai poder assistir, mas pedi que relembrasse o que foi seu dia de campeão mundial.
Everton é ativo na rede social. Desenvolto, parecia fazer uma espécie de reportagem ao caminhar pela calçada e mostrar em vídeo a enorme quantidade de moradores de rua. Comentei com ele, quando estava comigo ao vivo, a dualidade norte-americana em relação à chaga do racismo que tomou proporções mundiais com o último episódio de Minneapolis.
Ao mesmo tempo em que continua cometendo a barbárie de discriminar gente pela cor da pele, os Estados Unidos foram o país em que Everton e sua mulher, que chegaram do Brasil só com a vontade de viver um sonho, conseguiram empreender e vivem legalmente em Nova York pagando impostos e prestando serviços como qualquer cidadão norte-americano. O mundo não para de mudar e recentemente não tem sido para melhor.
De longe, quatorze anos depois de comemorar na Restinga o título mundial do seu Inter, Everton estará neste domingo pelas ruas de Nova York labutando. Contra pandemia e racismo, a favor da própria vida e da sua família. Uma boa história para contar na primeira coluna depois das minhas férias.
Como é viver de perto a eclosão dos protestos em função da morte de George Floyd?
O Brooklin foi o bairro onde a situação ficou mais tensa, carros queimados, saques a lojas... Aqui é bem nítido que há regiões onde predominam negros, caso do Brooklin, e outras onde quase só vivem brancos. Teve toque de recolher, parei mais cedo de trabalhar porque estava perigoso de circular pela cidade.
Já sofreu com racismo nos EUA?
Aqui no Queens, onde moramos, a região é constituída em sua maioria por descendência hispânica, asiática e indiana. Nosso filho gosta de usar cabelo black, sempre o incentivamos. Mas, na escola, o Paulo passou por uma situação na qual os colegas falavam coisas horríveis do seu cabelo afro. Ele passou a não querer ir para a escola. Resolvemos o problema com muita conversa com os responsáveis pelo ensino. Com muito amor, mostramos a ele que cada ser tem sua beleza como é, e que as pessoas devem respeitar as diferenças. No meu caso, às vezes, parece que a gente "contrata" um segurança particular quando entra num supermercado. Logo tem um segurança que passa a te seguir enquanto faz as compras.
Em Porto Alegre, também sofreram com preconceito?
Tenho muitos episódios para contar, mas dois deles me marcaram! Quando meu irmão ainda era estudante de Direito, também fazia curso de inglês num curso bem conceituado aí em Porto Alegre. Um dia, ele estava na biblioteca e foi abordado por um funcionário de forma ríspida e truculenta. Meu irmão disse que era aluno, mas foi levado para averiguar se a carteira do curso que ele mostrou como identificação conferia com os dados do sistema. Importante falar que existiam outras pessoas naquele local, mas meu irmão era o único negro. Em outro episódio, meu irmão e eu compramos comida numa rede internacional de lanches e cada um se dirigiu para o seu carro. No estacionamento, fomos abordados por agentes de segurança do Estado. Perguntaram o que fazíamos ali. Tranquilamente, explicamos que há pouco tempo havíamos adquirido os lanches e ficamos conversando no estacionamento. Então, fomos questionados sobre onde residíamos. Dissemos que era na Restinga, e certamente devido ao fato de sermos negros e morarmos em um bairro discriminado por sua pobreza, meu irmão foi agredido no rosto. Logo após ele conseguir se identificar como advogado, o agressor foi protegido por seus colegas para dificultar a visualização da sua identificação e saiu do local. O racismo é latente, pois todos os dias os cidadãos negros sofrem com atitudes criminosas.
Como tem sido a vida em meio à pandemia num dos epicentro do coronavírus?
É uma sensação inenarrável. Moro próximo a um hospital, escutei muitas sirenes de ambulâncias, pois a cada dia mais aumentavam os casos. A pergunta que sempre surgia era: quem está chorando agora? E eu pedia a Deus para que tudo acabasse bem. Tempos incertos, difíceis em todos os sentidos, tanto na saúde física quanto na emocional. Ninguém estava preparado para algo dessa amplitude, o afastamento social e a suspensão das atividades que impactam na situação financeira de muitas pessoas. Quem não tinha reserva, realmente está em um momento extremamente delicado.
Já levou colorado famoso ou anônimo no translado desde o aeroporto de Nova York?
Já atendi a família do Tinga, que marcou a história do Inter. Eu o admiro por sua representatividade como pessoa e jogador, somos de origem da mesma comunidade, a Restinga. Ah, mas já transportei um gremista ilustre, o Duda Garbi.
Que lembrança tem daquele Inter x Barcelona?
Dia incrível. Preferi ficar em casa e assistir ao jogo sozinho no meu quarto, estava muito nervoso e ao mesmo tempo muito confiante no meu time. Então, quando Gabiru fez o gol eu sai correndo de casa e fui a casa do Igor, um amigo gremista, e lá segui até o fim da partida e fiz a festa. Lembro-me como se fosse hoje.
Como se informa do Inter hoje em dia?
Acompanho tudo através do aplicativo da GaúchaZH, desde a manhã, com o Scola, até a madrugada com Drago. Gosto de trabalhar e escutar a rádio.
Que opinião tem sobre o trabalho de Eduardo Coudet no Inter?
Sobre o Coudet, inicialmente fiquei inseguro e desconfiado se era o ideal, mas com o passar do tempo ele foi fazendo um bom trabalho. Acredito que ele ainda vai trazer muitas alegrias.