Em 2019, o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga quis criar uma entidade que ajudasse a resolver problemas brasileiros, muito voltada para o terceiro setor. Com base no fato de que já havia muitas organizações trabalhando com educação, ambiente e direitos humanos, focou-se em saúde. Nascia o Instituto de Estudos para Políticas da Saúde (Ieps), com o objetivo de avaliar o impacto das politicas para o setor e propor alternativas. Uma das constatações que levaram à criação foi o fato de que o estudo sobre economia da saúde não era tão desenvolvido no Brasil como em outros países. Para dirigir a entidade, chamou Miguel Lago, com formação em ciência social e história familiar ligada ao Rio Grande do Sul. Lago é bisneto de Oswaldo Aranha, neto de Delminda, conhecida na família como Dedê. Lago tem passagens pela École d'Affaires Publiques – Sciences Po (a escola usa a forma abreviada da palavra "politiques") de Paris e como professor visitante da School of International and Public Affairs da Universidade de Columbia em Nova York.
Como o Ieps acompanha a pandemia no Brasil?
Com grande preocupação sobre nosso sistema de saúde. O Brasil foi pioneiro e muito corajoso em criar um sistema público de saúde em um país continental, o único com população acima de 100 milhões a oferecer saúde gratuita a todos os cidadãos. O SUS é um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo. Evidentemente, apesar do princípio e da ambição, nem sempre consegue garantir esse direito a saúde.
O que está na origem dessa situação?
Há duas razões principais. Uma é o subfinanciamento, desde sempre. Em análises comparativas de quando se investe em saúde em sistemas universais, a média é de 7% do PIB. Aqui, não chega a 4% do PIB. Mesmo em países da América Latina que não adotam sistema universal, como Argentina e Chile, o investimento é de cerca de 5% do PIB. Então, existe um problema de subfinanciamento crônico no sistema. A segunda causa vem dos problemas de gestão. O pouco financiamento é, muitas vezes, mal gerido. Seria preciso fazer melhor com o que se tem, mas também é importante aumentar o que se tem.
Dependendo da região, há situações assustadoras, com média de leitos de UTI muito aquém da considerada necessária em condições normais.
Como esse sistema estava estruturado?
Fizemos estudos para avaliar a infraestrutura hospitalar diante do coronavírus, focada no SUS. Dependendo da região, há situações assustadoras, com média de leitos de UTI muito aquém da considerada necessária em condições normais. Há locais com sete leitos por 100 mil habitantes quando o próprio Ministério da Saúde avalia que o mínimo é de 10 por 100 mil para atender a uma situação normal, sem pandemia. O país é dividido em 450 regiões de saúde e, destas, um terço não tem sequer um leito de UTI. Vive nesses locais cerca de 10% da população brasileira. Isso quer dizer que 10% dos brasileiros vivem onde não há sequer um leito de UTI.
Com estrutura já precária, adaptação para atender a nova demanda é ainda mais complexa?
Como a situação de infraestrutura hospitalar já era muito ruim, fica ainda mais difícil expandir para para atender corretamente a situação de saúde atual. Uma das respostas tem sido hospitais de campanha, mas não adianta expandir a capacidade de atendimento se o país não conseguir controlar a curva de contágio. As medidas de controle no Brasil foram brandas, se comparadas a medidas adotadas em outros países latino-americanos, como Argentina e Peru.
O Rio Grande do Sul tem sido um exemplo, feito boas políticas. Mesmo o Rio de Janeiro, que tem um governo mais contestado, tem adotado medidas sérias. Mas tudo isso fica mais difícil sem o suporte do governo federal.
Vê controle da curva no Estado de seu bisavô?
O Rio Grande do Sul tem sido um exemplo, feito boas políticas. Mesmo o Rio de Janeiro, que tem governo contestado, tem adotado medidas sérias. Mas tudo isso fica mais difícil sem o suporte do governo federal. Em situações de pandemia, é essencial ter um alinhamento claro de comando e controle. Nos demais países, há maior coordenação dos governos nacionais. A política atual está aquém da necessária para conter a curva. Ainda que se construam muitos hospitais de campanha e se amplie a infraestrutura hospitalar, é essencial trabalhar na contenção. Do jeito que a situação evolui no país, faz com que o colapso pareça algo muito provável. Esperemos que não, mas o Brasil não tem feito a lição de cada para evitar o colapso.
Apesar dos problemas, ter um SUS neste momento é melhor do que não ter?
Sim, fundamental. Se o sistema de saúde fosse mais frágil, o alinhamento seria ainda mais difícil. O sistema prevê trabalho constante e cooperativo entre os três entes da federação, União, Estados e municípios. E não são políticos, mas técnicos, que tocam o SUS trabalhando em cooperação. E há uma vantagem em que o Brasil tem de avançar, que é o Saúde da Família, maior programa de atenção primária do mundo, que chega a mais de 60% da população. Como o agente de frente é comunitário, ele conhece a população, sabe as particularidades e o contexto de cada família. Essa estrutura pode ser usada tanto para passar a mensagem do distanciamento social quanto para monitorar a doença, especialmente diante da ausência quase total de testes. Se for bem usado, pode basear a ativação de políticas de isolamento com rastreamento das pessoas com que cada um teve contato, o contact tracing usado na Coreia do Sul, mas com tecnologia de testes.
O maior objetivo será como evitar crises sanitárias e econômicas com pandemias e efeitos da mudança climática, que tendem a crescer. Isso pode ser um ensaio do que vai acontecer se não agirmos de maneira rápida.
Neste momento, como fica a relação entre economia e saúde?
Para quem trabalha com o tema economia da saúde, é falso o dilema entre uma e outra. As condições de saúde de uma população são fundamentais para a economia. É a mão de obra, são os consumidores. Existe uma discussão sobre oposição, mas não passa de estratégia política. A maioria dos economistas está convencida de que o importante, neste momento, é combater o contágio e resolver o problema de saúde pública. Em meio a uma pandemia, mesmo que pudesse, nem todo mundo trabalharia e consumiria. Uma nova doença para a qual não há vacina influencia o comportamento. Mesmo sem políticas de isolamento, haveria grande impacto econômico. Se todos os países tivessem se preparado quando o problema surgiu na China, talvez todos pudessem estar melhor. A maioria dos países ocidentais estava mal preparada. Temos de pensar em como como construir um sistema de saúde que permita blindar a economia a esses choques. O maior objetivo será como evitar crises sanitárias e econômicas com pandemias e efeitos da mudança climática, que tendem a crescer. Isso pode ser um ensaio do que vai acontecer se não agirmos de maneira rápida.
As medidas do governo estão conseguindo amenizar o impacto econômico?
É preciso elogiar muito a sociedade civil no Brasil, que se mobilizou de maneira rápida e estratégica para ajudar. O Congresso Nacional aprovou em tempo recorde a medida do Auxílio Emergencial, depois de semanas em que o Executivo federal ficou em bate-cabeça. Depois, o governo ainda demorou para sancionar para permitira a regulamentação e a aplicação. Foram criadas travas que não fazem sentido. Uma das grandes vantagens do Brasil é o Cadastro Único, porque tem as pessoas mais vulneráveis e faz o dinheiro chegar o quanto antes onde é mais necessário. A exigência de ter CPF regularizado, nesse tipo de população, era desnecessária. Houve falhas na tomada de decisão e na execução. Está sendo feito um gasto enorme para poder pagar, se esse dinheiro não chega com rapidez, perde o sentido, é muito grave.
Como vê o argumento de que distribuir recursos para quase 50 milhões é muito complexo?
O mais difícil, de fato, é fazer o dinheiro chegar às mãos de quem não está no Cadastro Único. Com mais vontade política e competência, seria possível fazer melhor. Houve muitas falhas. É evidente que é difícil e complexo, mas o maior propósito é ser rápido. Sem menosprezar as complexidades inerentes, demorou demais.