Observador tão atento quanto equilibrado das sucessivas crises nacionais desde a década de 1980, Carlos Kawall, atualmente economista-chefe do Banco Safra, tornou-se uma rara voz ponderada em meio ao cenário polarizado do debate econômico no Brasil neste momento. Sua experiência e seu conhecimento fizeram com que fosse um dos cotados para a presidência do Banco Central no governo interino, depois de ter sido secretário do Tesouro no primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva – em que conviveu com Henrique Meirelles no BC. Agora, identifica muito otimismo, especialmente no mercado, mas adverte para riscos que devem ser enfrentados.
O que esperar da economia pós-impeachment?
Inicia-se de fato uma nova fase, que é a pós-interinidade, a efetivação do governo Temer. Nesses pouco mais de três meses, já se tem equipe econômica operando, presidentes das estatais e demais ministros. Já é um governo que está jogando. É uma interinidade que parece excessiva, porque é um processo muito desgastante, mas vai passar. A partir de setembro, a gente tem uma janela de oportunidade, que acredito que vá até o final de 2017, para que se avance na agenda de reformas. Acredito que o comprometimento do governo com essas reformas deverá mudar a partir do momento em que se torne um governo efetivo, que não está mais dependente da decisão do Senado para que fique ou não. Terá legitimidade de ser um governo que tem um período de um ano e meio para tocar, digo um ano e meio porque em 2018 é um ano mais eleitoral, político, e o fundamental é que a gente consiga aprovar as reformas fiscais, o teto do gasto e a reforma da Previdência, gerando condições para a queda na taxa de juro e a recuperação da atividade econômica. Estamos na crise mais longa do período recente, e a recuperação será lenta.
Há consenso sobre essa baixa velocidade na recuperação?
Os economistas em geral acreditam nisso, a divergência é em relação a quão lenta será. A questão é se no ano que vem o PIB cresce entre zero e 1%, ou entre 1% e 2%. Estou no limite mais conservador do consenso, temos uma projeção de 0,5% para 2017, subindo para 2% em 2018. Na hipótese de que se tenha a aprovação dessas reformas no seu espírito original. É claro que negociações, ajustes no Congresso sempre existem, mas a gente vai precisar ter a preservação do espírito original. O teto do gasto tem de ser aprovado nos termos em que foi proposto, em que o limite é o IPCA. Ajustes dentro do teto, a maior ou a menor, podem ocorrer dentro de segmentos específicos, mas o teto tem de ser aprovado nesses termos. E a reforma da Previdência tem de mostrar uma queda consistente do gasto previdenciário frente ao cenário atual ao longo do tempo. E tem de ter regra de transição para pessoas que estão mais próximas da aposentadoria e tem de valer para quem está mais distante. Por exemplo, vale para quem tem menos de 50 anos e, acima disso, paga um pedágio, tem um pequeno prazo a mais. Estou dizendo isso não porque tenho 55 anos (risos), mas porque é razoável. Com isso, você teria ainda um período razoável, dois a quatro anos, em que o déficit primário seria gradativamente reduzido, mas demoraria um período razoável para chegar a um equilíbrio primário e, a partir daí, ter um superávit. A relação da dívida em relação ao PIB ainda crescerá para algo entre 80% e 85%. E com tudo dando certo, a economia volta a crescer, o juro cai, o primário vai se recompondo, começamos a reverter o nível de endividamento.
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Qual é o grau de preocupação com os sinais dúbios dados pelo governo?
A grande dificuldade é que o Brasil não enfrentou a questão ligada às despesas obrigatórias desde que aprovamos a Constituição, em 1988, com uma série de direitos sociais vistos então como permanentes, eternos, e agregamos outros, gerando essa trajetória insustentável do nosso Estado de bem-estar social. Recontratar esse Estado de bem-estar social é doloroso, afeta interesses de grupos que estão protegidos por dispositivos constitucionais e querem continuar, obviamente, protegidos. A prova de que é difícil é que a gente, até agora, não enfrentou isso. Havia duas maneiras para conviver com esse Estado, que foi crescendo. Primeiro, era a inflação, que desvalorizava os salários. Depois, o aumento da carga tributária. Essas seriam as alternativas se não houvesse o ajuste. Seria preciso recorrer a aumentos expressivos, até inviáveis, da carga tributária. Ou se não houvesse avanços da receita nem da despesa, a volta da inflação. É um momento decisivo em relação ao futuro.
A situação de Estados, como o Rio Grande do Sul, complica o quadro?
A situação fiscal do Rio Grande do Sul é dramática, até mais dramática no nível das administrações locais. O Estado não tem a opção de chegar ao final do ano e dizer que o déficit vai ser de R$ 170 bilhões. Não tem mecanismo para financiar isso, o que gerou a necessidade de fazer a repactuação de acordos de dívida, que estavam entocados nos últimos 20 anos. A situação é bastante grave. Há uma falsa ilusão de que se pode fazer o ajuste sempre em cima do outro. É o funcionário público que quer reajuste, o judiciário que quer reajuste, o lobby do setor de educação que quer ajuste, lobby do setor saúde, o empresário que não quer abrir mão de sua desoneração, de seu subsídio no BNDES, e assim por diante. Ajuste fiscal sempre é bom no bolso do outro. Essa lógica é que parece preocupar. Vimos grupos de interesses bem representados em Brasília que têm conseguido algum sucesso em se preservar do ajuste. Obviamente, isso joga preocupação em relação ao todo. Aparecem visões de que se fizermos o ajuste na PEC do gasto, o setor de educação vai perder R$ 60 bilhões até 2025. A saúde perderia mais R$ 13 bilhões. E é curioso como esses estudos são feitos. Supõem que, por obra do divino, a crise vai passar, e a economia vai voltar a crescer. Essa é uma falsa premissa. A crise vai passar quando você equacionar o lado fiscal, e o juro cair. Se não equacionarmos o lado fiscal, o juro não vai cair, e a economia não vai se recuperar, não haverá os recursos que supostamente os setores de saúde e educação teriam. Eles crescem quando a economia cresce.
É um período de ajuste ou é um novo momento?
Aí aparece outra discussão, que diz que o prazo da PEC do gasto é muito alto. É um pouco daquele raciocínio de que você vai ao médico e precisa fazer uma dieta severa, passar a praticar esportes, senão vai morrer. Aí você pergunta se pode fazer isso por dois anos e depois voltar a comer o que comia antes. É como se a disciplina fiscal pudesse ocorrer só durante certo período. Há uma dificuldade de sociedade para entender que a realidade mostra um país inviável. As pessoas relutam em aceitar essa ideia ou, mesmo que a aceitem, acham que não são elas que devem contribuir. A ansiedade é em relação à capacidade da sociedade e do Congresso de avançarem em velocidade inédita nos últimos 30 anos. É necessário rever a ideia de que no Brasil tudo pode, de que todos têm de ganhar benesses, todos têm direitos e benefícios do Estado. O setor privado está em situação gravíssima, muito endividado. É preciso que se consiga reduzir a taxa de juro. As empresas estão entrando em problemas financeiros, recuperações judiciais, desempregando. Tudo isso não parece ser suficiente para produzir grau de consenso. Esse é o grande temor. Será que a crise terá de entrar em fase ainda mais aguda e o desemprego ficar mais elevado para que finalmente se forme consenso? Essa é minha dúvida hoje.
A recuperação lenta é consequência da dificuldade de consenso ou será assim mesmo se houver avanço?
A recuperação será lenta mesmo que exista consenso. Se não houver consenso, não haverá recuperação. Ainda penso que as pessoas vão enxergar que não há outra alternativa. O setor público está endividado, o privado, também. Isso é uma diferença em relação a outras crises. Nos anos 1980, a crise era da dívida externa. Havia problema de endividamento no setor produtivo. Hoje as empresas estão com a capacidade de investimento muito reduzida. A economia teve um tranco muito forte. Vemos grandes nomes com muitas dificuldades. Um é o da a Petrobras. O desemprego ainda vai crescer, embora a gente veja sinais aqui e ali de que a economia estaria se estabilizando. Nesta semana, teremos a divulgação dos dados do Caged, com mais um número negativo expressivo. A recuperação desta vez será mais lenta. As empresas estão endividadas, as famílias também, em um momento em que a renda vem caindo em termos reais. A situação é que a economia cresceu bastante em cima de muito endividamento. Além disso, temos uma inflação muito resistente, a indexação da economia que dificulta a queda na taxa de juro. A taxa de juro vai cair a partir de novembro deste ano ou só em 2017. Isso torna o processo de desalavancagem das empresas e a recuperação da economia mais lentos.
Há alternativa ao ajuste?
Não há. Por exemplo, se o governo subir a carga tributária, vai asfixiar o setor empresarial ou quem está endividado. Seria algo desesperado, que acabaria não funcionando. Seria aprofundar a crise ainda mais ou caminhar pela linha inflacionária.
Como seria a saída pela inflação?
É quando se enxerga que o ajuste fiscal não ocorrerá, e entramos no contexto da dominância fiscal. É a situação em que é melhor baixar o juro, jogar o juro real para um patamar bem negativo e tirar a pressão do endividamento. É gerada uma fuga para ativos não relacionados à dívida pública. O dólar, por exemplo, vai para níveis mais elevados, a inflação sobe, e ao longo do tempo a alta da inflação vai corroendo em termos reais os gastos do governo. Assim, o ajuste fiscal é feito de maneira desorganizada. É um pouco do que a Argentina fez em período anterior, e a sociedade rejeitou na última eleição. São opções. Nenhum país está fadado ao sucesso. Se o governo não tomar as decisões corretas, caminha na direção inflacionária.
A expectativa no mercado financeiro de suposto desembarque de capital estrangeiro pós-impeachment é factível?
O desembarque não é pós-impeachment. É pós-reformas. Continuamos vendo dados do Banco Central (BC) que mostram a saída de capital da dívida pública, de US$ 13 bilhões neste ano. E o que o investidor quer é a capacidade de articulação política deste governo para fazer as reformas avançarem. Se isso ocorrer, é possível que o país tenha fluxo de capitais mais positivo, também com a agenda de privatizações e concessões. Estamos em momento benigno de liquidez internacional. Então, investidores poderiam enxergar oportunidades em um Brasil mais arrumado, com reformas aprovadas e agenda mais para o mercado. Mas isso não é uma questão só do mercado financeiro. Também é do setor empresarial, das lideranças políticas que enxerga a necessidade de corrigirmos esse rumo. O mercado financeiro não é o Brasil, nem a economia. Há a sociedade como um todo. Todos esses atores têm que ter papel importante para empurrar a agenda na direção correta.