A democracia surgiu como uma forma de governo inovadora a partir de assembleias de cidadãos, em Atenas, nos séculos IV e V antes de Cristo. Reunidos em praça pública, dezenas de vezes ao ano, os homens livres decidiam todos os temas de importância, da guerra aos impostos. Não se concebia que mulheres e escravos participassem da polis, entretanto. Umas e outros eram vistos como seres "da necessidade", confinados à esfera privada da existência; literalmente privados do essencial, a liberdade. A política se confundia, então, com a vida digna, lembrança que oferece um contraste radical com o ideal contemporâneo de uma vida completamente alienada dos temas de relevância pública e que parece só encontrar sentido na esfera privada. Para executar as decisões tomadas coletivamente, os gregos designavam cidadãos usando com frequência o recurso do sorteio. Com a medida, procuravam evitar que alguém tentasse se sobrepor aos demais ou usurpar o poder.
A ideia de representação política e de mandatos fixos surgiu muito depois, com a formação dos Estados Unidos. Os revolucionários americanos tinham uma enorme desconfiança da democracia, porque o que se entendia por este termo era, até então, a participação direta do povo nas decisões públicas, o que alargava os espaços para a demagogia e para as piores decisões, aquelas tomadas fundamentalmente com base nas emoções. Os americanos perceberam, antes de todos, a necessidade de um sistema que viabilizasse a escolha de caminhos políticos, mas que garantisse, a partir de "filtros institucionais", a formação de uma assembleia de representantes capaz de aprofundar o debate político e, assim, qualificar o processo de tomada de decisões. No começo, entretanto, a ideia de participação que eles tinham era tão restritiva quanto a dos gregos e definida, igualmente, em ternos de classe social. A regra básica era a de que os proprietários votavam. Em termos históricos, assim, é correto lembrar que a democracia surgiu sem representação e que a representação surgiu sem democracia. Ainda hoje, a propósito, os currículos nas escolas brasileiras não oferecem à Revolução Americana a devida atenção. O mais comum é se tratar da modernidade a partir da Revolução Francesa, processo igualmente importante, mas que jamais teria ocorrido sem a ousadia americana, responsável também pela ideia subversiva de que todos os seres humanos possuem direitos fundamentais.
Recentes decisões tomadas em processos democráticos, em diferentes países, parecem evidenciar uma crise nos modelos disponíveis. Os exemplos são muitos e tomo apenas dois deles: a indicação de Donald Trump pelos republicanos para a disputa da Casa Branca e a escolha majoritária dos britânicos pela saída da União Europeia. Por um lado, a mais tradicional democracia no mundo permite que um desequilibrado se consolide como alternativa real de poder; no outro lado do Atlântico, o movimento conhecido como "Brexit" se impõe e, um dia após a divulgação dos resultados, as consultas dos ingleses ao Google com perguntas sobre "o que ocorre se sairmos da União Europeia" e "o que é a União Europeia" disparam. Os dois processos me parecem muito próximos e deveriam ser tomados como sintomas de que a instituição democrática precisa ser atualizada. É difícil vislumbrar alternativas, mas parece cada vez mais claro que a radicalização da democracia não haverá de ser um simples alargamento da participação popular. A ideia de que a internet e os recursos extraordinários de interatividade poderiam construir uma saída para a democracia apontam, antes, para o risco da sua destruição. Possivelmente pelo desconhecimento de um dos paradoxos de nossa época: a existência de regimes democráticos firmados a partir da supressão da política.