* Jornalista do Grupo RBS
Imagine se a gravíssima denúncia contra o presidente Michel Temer, trazida à tona pelo jornal O Globo, tivesse Lula como personagem central. Em questão de horas, a narrativa de blindagem do ex-presidente cuidaria de reduzir o vazamento a mais um ato da "mídia golpista mancomunada com a PF, o MPF e o Judiciário", e o acusador seria despachado para o cemitério das reputações.
Coloque agora Lula na mesma sala com Nicolás Maduro, Donald Trump, Recep Erdogan e Vladimir Putin, outros cinco enrolados em denúncias. Eles encontrarão facilmente um tema em comum: como desqualificar jornalistas e veículos de comunicação que se interpõem diante de seus projetos de poder.
Ideologicamente desafinados, os cinco compartilham uma tendência crescente entre políticos enrolados em denúncias. A vilanização da imprensa é parte da estratégia de convencimento da opinião pública pela construção de versões que borrem desconfortos e distorçam a realidade em prol do líder político. Com a faca no pescoço e atordoado, Temer sequer encontrou uma narrativa, mas, como se comprova agora, a de Lula vilipendia a imprensa quando a maré lhe é negativa e se socorre dela quando lhe convém.
Gaúchos poderiam chamar as ditas narrativas pelo que são: histórias para boi dormir. Para terem sucesso, pelo menos dois ingredientes são fundamentais. O primeiro é se declarar perseguido pela imprensa. Todas as críticas, acusações e denúncias devem ser debitadas a um complô, mesmo que os veículos esculachem seus adversários, como no caso de Temer e Aécio Neves. Ato contínuo, é preciso engraxar as correias de transmissão de redes e aparelhos sociais para espalhar o descrédito sobre o portador das más novas.
No script das narrativas, não importa que o jornalismo profissional se alimente da independência, da pluralidade e do acerto – e não do erro, que tem de ser corrigido. Confissão? É mentira. Prova? É montada. Crítica? É perseguição. A pós-verdade não tem antídoto ainda – é previsível que cidadãos se embaralhem com a overdose de textos, posts, vídeos e grupos de mensagens que invadem nossa vida. Para driblar a doutrinação, a receita é adotar-se um saudável ceticismo: desconfiar das versões, buscar fontes de credibilidade, cotejar diferentes origens. E, principalmente, questionar as narrativas que líderes políticos encalacrados tentam empurrar à sociedade.