No dia 7 de setembro, quinta-feira, haverá no Theatro São Pedro o início de um festival sobre Caio Fernando Abreu. Não vou poder estar presente, mas gravei um pequeno depoimento que deverá me representar naquela hora.
Minha relação com Caio foi singular: dez anos mais moço do que eu, aniversariando um dia depois de mim, eu o conhecia de nome desde seu primeiro livro, sobretudo por comentários inusitados de severos professores e críticos literários: "Esse rapaz nasceu pronto. Raríssimo um escritor nascer pronto".
Muitos anos depois, Luciano Alabarse pergunta se eu permitiria que ele encenasse um de meus romances, Reunião de Família. Como sempre, minha primeira reação foi dizer não. Nem eu sei por que fobia, quase sempre esse é meu primeiro movimento. Depois, aceito o que me parece bom, e possível: já não estou disposta a cruzar o país dando palestras e entrevistas. Um começo de sabedoria me faz cultivar minha toca, meu sossego.
Mas quando Luciano comentou que a adaptação seria de Caio, que tinha gostado muito do livro, superei minha hesitação e concordei, quase feliz. Daqueles dois juntos, só podia sair coisa boa. Foi assim que algumas vezes Caio F. e eu nos encontramos, em geral na minha casa. Nasceram amizade, profundo respeito, lealdade. E um humor meio nosso, a que vou me referir mais adiante. Aliás, ele comentava com amigos: "A Lya, com aqueles cândidos olhos azuis, não sabe nada daquilo que escreve, as loucuras e tragédias. É tudo psicografado". E ria, voz grave e olhos brilhantes, misto de ironia e ternura.
Continuamos amigos, raramente nos encontrando, ele em São Paulo ou Londres, eu aqui em Porto Alegre e por pouco tempo no Rio. Nos escrevíamos, aquela coisa nada regular do Caio, duas, três longas cartas, deprimidas e angustiadas, outras engraçadas: "Estou feito uma velhinha inglesa, varrendo a casa, tomando chá, nada de drogas, nem sexo, nem coisa nenhuma. Um santo". Falava de solidão, desencanto, falta de dinheiro, amores infelizes.
Pouco antes de sua morte, já sem receber visitas, do hospital, alguém me ligou: o Caio queria falar comigo, pedia que eu ligasse. Há um bom tempo não nos víamos nem nos falávamos, talvez desde que elogiei, comovida, o pungente artigo em que comentou sua doença. A enfermeira passou o fone para ele, a voz era a mesma. A pergunta veio direta, e simples: "Lya, o que você acha que vai acontecer comigo, quando eu me libertar deste corpo?". Olhei pela janela, lembro que chovia forte: "Acho que vai ser como deve ter sido nas mortes recentes das duas pessoas que amei muito: pura intuição, deslumbramento. Numa fulguração, vamos entender tudo isso que aqui nos intriga tanto, e por isso escrevemos".
Breve silêncio, ele então disparou: "E se não for assim?". Respondi espontaneamente, com aquele humor meio louco que havia entre nós: "Olha, Caio, se não for assim, se depois desta vida complicada a gente descobrir que existe um Deus rabugento com fita métrica na mão para nos avaliar, nós dois vamos virar uns diabos bem loucos e fazer muita maldade neste mundo".
A resposta foi aquele riso, na sua voz inesquecível. Poucos dias depois, ele morreu. Mas sua voz, sua arte, seu gênio, suas dores e amores, e nossa despedida, estão aqui comigo para sempre.