No mundo da tipografia em espanhol, "palo seco" designa a letra sem adorno, nenhuma ênfase, sublinha, negrito, nada: a letra ela mesma. Diz o Google que em partes do nordeste brasileiro a expressão "a palo seco" significa só, desamparado, desprotegido. Se o senhor pesquisar no YouTube "a palo seco, Andaluzia", vai dar de cara com pérolas do "cante a palo seco", uma forma desprotegida de canto solo, "a cappella", sem acompanhamento, praticada por homens ou mulheres, ligados ao universo do flamenco, lá do sudoeste da Espanha.
O "cante a palo seco" é o cara ali, sozinho como nasceu, com sua voz e corpo, cantando como um árabe, um cigano, um andaluz, sua voz se espalhando em melismas doloridos (melisma: quando a voz permanece numa mesma vogal variando a nota musical, vibrando). Esse canto foi tema de João Cabral de Melo Neto, em A Palo Seco (1960). O poeta encontrou similaridades entre a Andaluzia e o seu Nordeste, entre Sevilha e Recife. E dedicou vários poemas àquele universo. Pelo menos dois são poemas absolutos, o Estudos para uma Bailadora Andaluza e A Palo Seco, que descreve: "Se diz a palo seco/ o cante sem guitarra;/ o cante sem; o cante;/ o cante sem mais nada;// Se diz a palo seco/ a esse cante despido;/ ao cante que se canta/ sob o silêncio a pino".
Silêncio a pino (o poeta sabe nos desinstalar dos clichês): tudo quieto e o cantor ali, solito como – agora dou eu uma nova volta neste parafuso – um gaúcho só, imagem poderosa que Jayme Caetano Braun, Aureliano de Figueiredo Pinto e Luiz Sérgio Metz souberam aproveitar.
Em 1974, Belchior lança um LP com A Palo Seco: se você me perguntar por onde andei no tempo em que você sonhava, de olhos abertos lhe direi – amigo, eu me desesperava. E não vá pensar que esse desespero era moda em 1973. Era a realidade mesmo que o impunha a quem tivesse neurônios funcionando o suficiente para perceber o horror da ditadura, do consumismo, da máquina tomando conta de tudo, até na hora do almoço. Máquina maquina máquina.
Adolescente, eu encontrava um desesperado como eu. Ele dizia: "Tenho 25 anos de sonho e de sangue e de América do Sul". Ele, um cearense. Nós, gaúchos, por aqueles anos éramos talvez os mais entranhadamente latino-americanos do Brasil todo. Belchior já era um gaúcho. Até completar os meus 25 anos, essa consigna girou no meu cérebro.
Juarez Fonseca publicou entrevista no 1º de maio de 1977, em ZH, em que Belchior expunha com clareza doentia a máquina da indústria cultural, que ele alimentava a contragosto: "Claro que também dou o meu irrestrito apoio aos artistas que não têm saco pra isso, que não querem transar com o sistema, que acham que gravar disco não é uma coisa condizente com a sua obra. Eu acho que esses são os sublimes, os radicais que chegaram à desobediência civil e à omissão voluntária". (Belchior sabia das coisas: "o meu modus cantandi, o método de fazer música, é um modo de pensar a realidade".)
Fazer canção não por boniteza, mas pela precisão de pensar: para isso serve a canção no Brasil. Mas também cogitar a possibilidade de cair fora, que era, desde então, um horizonte positivo, o umbral do sublime. Belchior, nosso Dylan também fanhoso, foi realmente um grande.