O mundo está de olho em Istambul. Afinal, o sábado será para conhecer o campeão da Liga dos Campeões, a competição mais glamourosa do futebol, uma espécie de Copa do Mundo de clubes. Só que o fim de semana também será de conhecer o campeão de outra Liga dos Campeões. A da África. A alguns milhares de quilômetros de Istambul, saindo do Mar Egeu, pegando à direita no Mediterrâneo, cruzando o Estreito de Gibraltar e chegando via Atlântico, a terra vai tremer. Na histórica Casablanca, retratada no cinema por Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, o marroquino Wydad e o egípcio Al Ahly se enfrentam para saber quem será o dono da África nesta temporada.
Tudo bem, a Liga dos Campeões de Istambul tem charme, requinte, grandes estrelas e tudo o mais que o dinheiro pode bancar. Mas a Liga dos Campeões de Casablanca, meu amigo, tem amor, devoção e raízes que vão muito além do futebol. Estamos diante aqui de dois mundos muito distintos dentro da mesma indústria, movidos por paixões e razões diferentes.
Um breve mergulho além da superfície na origem de Wydad e Al Ahly é suficiente para saber que lidamos com muito mais do que futebol. Aliás, aqui um parêntese, para as informações do plantão esportivo. O Al Ahly venceu o jogo de ida no Cairo, há uma semana, por 2 a 1. Como lá o gol qualificado ainda vale (é raiz, estou dizendo), o 1 a 0 faz do Wydad o campeão, domingo. As semelhanças entre os dois finalistas vão além da camisa vermelha e branca. Há por trás delas histórias que se confundem com a história dos dois países, de luta, de liberdade, de autonomia em relação aos colonizadores franceses e ingleses e aos absolutistas dos nossos dias.
O Al Ahly é um Real Madrid da África. Neste sábado, busca seu 11º título continental. São 15 milhões de torcedores no Egito e 60 milhões, estima-se, na África inteira. O clube nasceu, em 1907, já como bandeira de luta contra o sistema da época. Al Ahly, na tradução, significa "O Nacional". Os estudantes que o criaram tinham como ideia fazer dele um foco de resistência à monarquia obediente aos colonialistas ingleses. Não demorou para que operários se tornassem simpáticos ao clube e iniciassem ali a construção de uma torcida popular e com veia nacionalista.
Revolução
Em 1952, na revolução egípcia que tirou do poder o Rei Farouk e insitituiu a Nova República, o Al Ahly apoiou. Depois, conclamou presidente de honra Gamal Abdel Nasser, um dos grandes líderes do levante e que viria a comandar o país por 14 anos, até 1970. O clube também abriu portas para que o Exército egípcio treinasse em suas instalações, conclamou torcedores a se alistar e serviu de coleta de sangue em suas instalações.
Mais recentemente, na Primavera Árabe, a torcida do Al Ahly engrossou os movimentos nas ruas para derrubar o governo de Hosni Mubarak. A ditadura de 30 anos foi tirada do poder. Porém, o governo eleito durou apenas um ano. O troco veio da pior forma, no começo de 2012, na tragédia de Port Said. O Al Ahly visitava o Al Masry, e os portões do setor dos visitantes foram fechados, a torcida local atacou a Ahlawy, os ultras do Al Ahly, que não tiveram como escapar. O saldo foi de 74 mortos. Na época, o país era comandado por uma junta militar, que havia deposto o governo eleito de Mohamed Morsi. Os jogos no Egito foram de portões fechados por três anos.
A história do Wydad vai na mesma linha. Na tradução, Wydad significa "amor'. O clube surgiu a partir de reuniões da elite de Casablanca, como uma forma de se opor ao controle francês. O Campeonato Nacional era um retrato da divisão do país. O USM, clube bancado pelos colonizadores e com jogadores franceses e de outras minorias locais, era que mandava no cenário local. Porém, o Wydad se fortaleceu e virou um símbolo de resistência. Dentro dela, surgiu também seu arquirrival, o Raja, cuja origem está nos movimentos populares. Aliás, a rivalidade entre os dois faz o Gre-Nal virar festa no playground. As imagens das duas torcidas correm o mundo, com seus cânticos e mosaicos.
Vi de perto a paixão dos marroquinos pelo futebol na última Copa. Os torcedores que foram ao Catar se juntaram à colônia que vivia por lá e promoveram nos jogos da seleção uma festa com ares latinos, tanto dentro quanto fora dos estádios. Aliás, o Wydad estava na origem daquela seleção. Walid Regragui, o técnico do Marrocos, foi quem comandou o clube na conquista do título da Liga dos Campeões. A festa pode ter um bis neste domingo, numa final sem o glamour europeu, mas com a raiz mais genuína do futebol.