Motoristas que são flagrados nas rodovias federais cometendo infrações de trânsito, passíveis de abertura de processo de suspensão da Carteira Nacional de Habilitação (CNH), não estão respondendo a estes ilícitos. São os casos de quando um veículo é flagrado trafegando com velocidade superior a 50% do limite máximo da rodovia, quando há embriaguez ao volante ou recusa ao teste do etilômetro.
O problema ocorre desde abril de 2021 por causa de uma alteração legislativa. E não é só no Rio Grande do Sul que há impunidade, mas em todas as rodovias federais do Brasil.
A lei 14.071 alterou alguns itens do Código de Trânsito Brasileiro (CTB). O limite de pontos para ter a carteira de motorista suspensa foi aumentado. A validade da CNH foi ampliada. Na mesma mudança, a cadeirinha passou a ser item obrigatório para transporte de crianças.
A lei também alterou a competência de quem deve abrir processo de suspensão da carteira de motorista em rodovias federais. Essa mudança tinha como objetivo tornar a aplicação da pena de suspensão mais ágil, mas o que se viu foi exatamente o oposto.
Antes, os departamentos estaduais de trânsito eram os responsáveis. Desde abril de 2021, a atribuição passou a ser da Polícia Rodoviária Federal (PRF), quando as infrações forem registradas em estradas da União, como BR-116, BR-101, BR-290, BR-386, entre outras.
A Associação Brasileira dos Advogados de Trânsito (Abatran) vem alertando para o problema desde janeiro deste anos, quando a gaúcha Rochane Ponzi, assumiu a presidência.
— A alteração legislativa que impôs aos órgãos de trânsito a obrigação de instaurar processo de suspensão de forma concomitante à penalidade de multa acabou criando uma omissão muito grave, pois toda vez que um condutor comete uma infração que tem previsão de suspensão do direito de dirigir e se essa infração for cometida, por exemplo, numa estrada federal, a chance de ele receber apenas uma multa e não ter a CNH suspensa infelizmente é uma realidade — alerta Rochane.
Aumento de mortes
Coincidência ou não, o Rio Grande do Sul vem registrando um aumento no número de mortes no trânsito. Em 2020, antes da alteração legislativa, 236 perderam a vida em rodovias federais gaúchas. No ano seguinte, quando a mudança passou a valer, 316 pessoas morreram. Em 2022, houve mais óbitos: 334. Somente em 2023 ocorreu uma diminuição: para 296 mortes. Até agosto de 2024, as estradas federais do Rio Grande do Sul já contabilizam 241 óbitos, segundo dados da PRF.
O que diz a PRF
A coluna procurou a PRF. Em nota, a corporação admite que não abre processo de suspensão de CNH.
O órgão chegou a atribuir competência de abrir processo de suspensão da habilitação aos departamentos estaduais de trânsito. A coluna também procurou o Departamento Estadual de Trânsito do Rio Grande do Sul (Detran-RS), que confirmou que cabe à PRF aplicar a suspensão da CNH em rodovias federais.
Questionado pela coluna sobre a informação defasada, a PRF reconheceu, porém, que tem competência e disse que um grupo de trabalho foi montado pela corporação para tratar especificamente do assunto e para que, "ao implementar o sistema, seja garantida a segurança jurídica para o órgão e para o cidadão".
"O grupo de trabalho também atua para estabelecer o rito jurídico para a aplicação da suspensão do direito de dirigir, que respeite os direitos constitucionais dos usuários das rodovias federais e da instituição", conclui a nota.
Como resolver
Para resolver o defeito que a nova legislação causou, Rochane acredita que os departamentos estaduais de transito precisam voltar a ter competência. Isso pode ser feito por meio de alteração do CTB, ou seja, por votação no Congresso Nacional. Outra possibilidade seria a celebração de convênios de reciprocidade.
— É importante que os órgãos, ao resolverem seus problemas de competência, não dificultem o exercício do direito de defesa dos condutores - avalia Rochane.
Enquanto isso
Se o mesmo motorista for flagrado em uma nova abordagem em rodovia federal, o policial identificará que o condutor segue dirigindo com direito de conduzir suspenso, o que já caberia uma cassação da CNH, mas não poderá fazer nada além de aplicar uma outra multa de trânsito. Por outro lado, se o mesmo motorista for flagrado pelo Detran-RS em uma operação da Balada Segura, dirigindo sob influência de álcool, ele sofrerá todas as consequências da lei: pagará uma multa de R$ 2.934,70 e terá a carteira de habilitação suspensa por 12 meses.
— Já estamos cansados de saber que punir apenas o bolso não tem a capacidade de mudar comportamentos. Estamos vendo isso por meio da divulgação de um aumento expressivo no número de mortes no trânsito. E se os órgãos de trânsito não passarem a cumprir o que a lei determina, com toda certeza colheremos números ainda piores num futuro muito próximo — conclui Rochane.