"Eu semeio vento na minha cidade. Vou pra rua e bebo a tempestade." (Chico Buarque)
A aceitação das mazelas, independentemente do tipo de sofrimento agregado, só se processa quando há uma razão aparente de ser. E o nosso cotidiano está recheado desses exemplos, em que ficamos buscando um sentido. Tanto faz se a perda está relacionada à doença, com seus desdobramentos que sempre incluem medo e fantasia de morte, ou a uma tragédia coletiva, que, afetando uma comunidade, tem seu efeito pulverizado, sem poupar ninguém, mesmo aqueles que se sentem inatingíveis, como se fosse possível ser feliz sozinho.
Curiosamente, essa universalização da catástrofe não diminui o dano emocional de cada um dos envolvidos. Por isso, passado o tempo mais agudo da hecatombe, ainda persiste uma condição anímica de desânimo crônico. No entanto, como não podemos seguir lamentando indefinidamente o que perdemos, e foi muito, começam a ecoar as vozes de conclamação para um esforço conjunto de reconstrução.
Quando vasculhou nos escombros, percebeu que a enchente tinha bom gosto musical, afinal, os álbuns de Miles Davis, Norah Jones, Ella Fitzgerald, Nina Simone, Frank Sinatra, Elis Regina e Cartola tinham sido levados pela correnteza.
Nestas circunstâncias, vêm à tona as nossas diferenças em relação a virtudes essenciais como coragem, resistência, empatia e insubordinação. Alguns sucumbem à dor da perda e vacilam no rumo da ressurreição, passam a desacreditar de si e dos outros, necessitam evidentemente de ajuda psicológica.
Entre esses, estão os que foram além das perdas materiais e tiveram subtraídas suas memórias afetivas, como um senhor de meia idade que foi arrancado de casa no meio da noite, com água já entrando pela janela. Quando se animou a voltar lá, 10 dias depois, para avaliar a extensão do prejuízo, encontrou uma parte da sua coleção de DVDs e dezenas de discos de vinil boiando na sala de estar. Quando vasculhou nos escombros, percebeu que a enchente tinha bom gosto musical, afinal, os álbuns de Miles Davis, Norah Jones, Ella Fitzgerald, Nina Simone, Frank Sinatra, Elis Regina e Cartola tinham sido levados pela correnteza. Ainda que a chance de recuperar integralmente essas perdas fosse remota, nada se comparava, no sentimento dele, ao desaparecimento da escrivaninha com o pacote de cartas que recebeu dos pais durante o longo tempo em que esteve fora do país. Algumas dessas cartas foram relidas menos vezes do que mereciam. Antes as tivesse decorado.
Mas nada nos demoverá do afã de recomeçar. Verdade que seguimos olhando o rio (ou o lago) de soslaio, com um misto de medo e desconfiança, ainda mais agora que, com qualquer ventinho, ele se derrama em prantos na avenida. Alguns consideram que ele faz isso por birra, outros, mais perspicazes, já entenderam: o nosso lindo Guaíba só voltará à alegria de cartão-postal quando tiver seu leito dragado de toda a sujeira que a enxurrada asquerosa acumulou.