Só conseguimos mensurar o tamanho de alguém na nossa vida pela medida da falta que ele nos faz. Esse critério explica a dificuldade que algumas pessoas têm de morrer, enquanto outras são enterradas no subúrbio do esquecimento, de onde não há nada que as arranque, e o maior lamento é um suspiro dividido entre o dispensável e o constrangido.
Todos descobrimos, ao longo da vida, os modelos com os quais fomos agraciados para construirmos a memória do inesquecível, sem escaparmos da tristeza desalentada dos encontros que nunca teríamos escolhido. Isso assumido, todos compreenderão a naturalidade com que passamos a borracha nalguns personagens, sempre ricos de neutralidade e passividade, esses dois sentimentos que definem o distanciamento emocional e a apatia afetiva.
Periodicamente, sinto vontade de reverenciar a memória dos que deixaram um rastro fundo na minha história pessoal, sem que eu tivesse feito algo para merecê-los, e também por isso são considerados bênçãos do destino, seja lá o que destino signifique para cada um.
Curtimos falar deles, como se recordar passagens carinhosas pudesse, de alguma maneira, atenuar a dor da falta que sentimos.
Fugindo da família, para que a seleção dos inesquecíveis não sofra o viés da tendenciosidade que os laços sanguíneos impõem, fixemo-nos em amigos, de qualquer idade, que constituem a galeria dos memoráveis. Curtimos falar deles, como se recordar passagens carinhosas pudesse, de alguma maneira, atenuar a dor da falta que sentimos.
Sentei para escrever sobre isso motivado pela proximidade da data da morte do grande Roberto Correa Chem, um dos ilustres membros da minha galeria. Imbatível parceiro das cirurgias reconstrutivas mais complexas, técnico brilhante e criativo, com um senso de humor ácido e debochado como só conseguem os muito inteligentes, plantou ao longo dos seus 66 anos respeito carinhoso, reverência espontânea e naturalmente alguma inveja daqueles que não conseguiam mais do que querer ser como ele.
Almoçávamos juntos até duas vezes por semana, sempre depois das 13h30min, quando, segundo uma teoria dele, o ambiente do refeitório ficava mais agradável "porque os chatos têm fome mais cedo!".
Sempre disputávamos quem pagaria o almoço, com um revezamento marcado pelo bom humor. Naquela quinta-feira, entrei no salão, e ele já estava lá. Sentado de costas para a porta, conversando com alguém. Passei no caixa e me antecipei no pagamento daquele dia. No final, ao descobrir o almoço já pago, fez uma reclamação exagerada e prometeu que, quando voltasse da viagem que faria no domingo, a próxima conta seria dele. Isto combinado, me despedi apressado.
Quantas coisas mais teriam sido ditas se imaginássemos que aquela seria a última vez? Na segunda-feira, com os amigos chorando abraçados a tragédia da sua morte, entrei no refeitório, mastiguei com a dificuldade de engolir pela dor física da perda, para descobrir, no final, que na quinta-feira da última lembrança, antes de sair, ele deixara pago o meu próximo almoço.
Agora, como a comprovar que as melhores lembranças voam no tempo, já se passaram 12 anos desde que Roberto Chem e suas amadas esposa e filha partiram para uma viagem de sonhos a Paris, e por razões nunca bem explicadas mergulharam 4 mil metros no Atlântico, no fatídico voo 447 da Air France, de onde ele só foi resgatado dois anos e meio depois.
Eduardo, seu filho querido e herdeiro de especialidade e caráter, se emociona ao mostrar as fotos das notas de cem dólares que ele conservava intactas protegidas pelo zíper preso ao cinto.
O corpo, com peso reduzido à metade do normal por efeito da desidratação salina, só servia para contrastar com o gigantismo da saudade dos que relembram a dor daquele 31 de maio, como se tivesse doído ainda ontem.