Os pobres se parecem em qualquer lugar do mundo. A semelhança se apoia na permanente religiosidade e se expressa na solidariedade com os iguais e na desconfiança com os diferentes. Uma pesquisa entre a população mais pobre da periferia de Detroit revelou que em relação à doação de órgãos, por exemplo, havia, nesta população desprovida, uma dificuldade acima da média da população americana em entender o que é morte cerebral. Mas entre os que a entendiam, o índice de doação ficava abaixo da média nacional, e o maior obstáculo à autorização era, de longe, a falta de confiança no sistema, mostrando que a desconfiança não usa passaporte para cruzar fronteiras. Quando se convive com esses pacientes, percebe-se, tristemente, que esta prevenção não é gratuita: a humilhação crônica e os maus-tratos repetidos os ensinaram a desconfiar.
O Hospital General de Bogotá é uma construção antiga, onde apenas uma parte do prédio tem dois pisos, reservada, por suposto, aos pacientes que têm condições mínimas para subir uma escada. Naturalmente por isso, a transferência de algum paciente para esta ala é festejada pela família. Terminada uma cirurgia demonstrativa de traqueia, saí do bloco cirúrgico deixando para trás o meu anfitrião, que faria ainda um procedimento menor, antes que saíssemos para almoçar. Resolvi dar uma circulada pelo hospital numa espécie de viagem ao passado, tanto tudo se parecia com a nossa Santa Casa do início da minha vida médica.
O formato retangular do prédio abriga no seu interior um pátio central enorme, com piso e bancos, muitos bancos, de pedra. E em cada canto há um oratório, um arremedo meio tosco de gruta.
Não haveria de ser por falta de oração que os pobres de Bogotá sucumbiriam. Atraído pelo cheiro, comprei um copo do melhor café do mundo, mas intragável de tão quente, e resolvi dar uma circulada no pátio esperando que esfriasse. Quando surgiu uma vaga, sentei na extremidade de um dos bancos, entre uma velhinha que dormia e um velho de olhar enviesado que encostara ali a sua cadeira de rodas. Conversa iniciada, na segunda frase ele já perguntou: "De qué parte de Brasil és usted?".
Destruída a minha fantasia antiga de espanhol impecável, conversamos muito e, enquanto me contava do mal que lhe parecia a medicina colombiana, preparava um palheiro que, se entendi bem, tinha até um pó de hortelã. Quando lhe perguntei se era permitido fumar no hospital, ele me disse que "sí, pero solamente nel tiempo correcto, que és cuando los médicos, por suerte, se van a sus casas dormir!".
Com o cigarro em fase avançada de construção, ele quis saber o que eu estava fazendo ali, e lhe contei que me interessava ver como era o atendimento médico nos países irmãos, e tinha gostado muito dali, a começar pela inscrição no alto da porta de entrada: "Não há remédio que cure o que não cura a felicidade". Como não tinha nenhuma referência quanto à autoria, perguntei-lhe se sabia de quem era a frase maravilhosa. E ele, sem desviar o olho do palheiro, segredou-me: "És de ese comunista famoso y rico, que ganó todos los prémios!" Então, eu disse só para confirmar: "Mas claro, esta frase tem a cara do Gabriel García Márquez, que homem genial!"
Enquanto lambia a palha, ele completou: "Es lo que dicen de el por todo hogar, pero ese hijo de puta nunca se trató aqui!". Que lhe importava que fosse reconhecido como um ídolo internacional e festejado como um orgulho do seu país, se discriminava o atendimento médico destinado aos pobres de Bogotá? A velha desconfiança estava de volta, e pelo menos naquele pátio não havia felicidade suficiente para curá-la.