O cumprimento rigoroso do rito processual é o que define o estado de direito, pelo qual todas as nações, em algum momento de sua história, lutaram com o denodo de quem percebeu que essa é a divisória entre a liberdade e a servidão.
Viver em estado de direito é o sonho do homem comum que precisa sentir-se protegido por um sistema que lhe permita fazer suas escolhas em liberdade, tendo como único limitante o igual direito de seu vizinho, que terá certamente a mesma ambição.
Conta-se que um dos últimos monarcas da Alemanha, contemplando o enorme gramado dos fundos do palácio de verão em Potsdam, percebeu que, se fosse removida aquela construção ao fundo, haveria espaço para uma cancha de polo, sua paixão. Atravessou o terreno e deparou com o dono de uma velha olaria. Quando comentou da sua intenção de comprar-lhe a propriedade, foi interrompido com a informação de que ela não estava à venda. Perturbado porque o homem nem quis saber quanto lhe pretendia pagar, o rei, perdendo a compostura, disse: "E o senhor sabe quem eu sou? O senhor tem noção de que eu posso tomar-lhe o terreno?". O velho teria sorrido e retrucado: "Como se não houvesse juízes em Berlim!".
Essa certeza de que não há ninguém acima da lei, não importando quem seja ou represente, é o alicerce que deve sustentar uma nação que pretenda ser de verdade, ou nunca será. Quando as leis são burladas, as sentenças são adaptadas a interesses menores e o exercício da justiça tem aquela morosidade de quem não acredita, começa a construção da impunidade, esta marca peçonhenta dos países subdesenvolvidos.
Claro que não precisávamos chegar ao requinte de ter réus assumidos, em exercício legislativo, na busca obstinada de brechas legais que lhes preserve ao menos a cara, porque a honra até eles concordam que seria um exagero.
Sempre que ocorrem estes atropelos éticos, a sociedade consciente se articula de alguma maneira para protestar porque se sente ultrajada nos seus direitos elementares, e cada cidadão sente-se ameaçado pela possibilidade real de que venha a ser a próxima vítima. Desde 2013, as ruas do país foram várias vezes ocupadas por brasileiros que, excluídos os baderneiros, representam a média da população honesta, trabalhadora e, em algum momento, esperançosa.
Quando, no entanto, a repetição do protesto resulta em nada, os escândalos se multiplicam e não impressionam mais, as famílias decentes só pensam em mandar seus filhos para o Exterior, e a mídia atarantada noticia com requintes de helicóptero a libertação de um megamarginal, as paredes do poço parecem tão altas, que se tem a impressão de que chegamos ao fundo.
Todos os que viveram mais de 50 anos devem lembrar que este estado de espírito de constrangedora letargia sempre antecedeu os radicalismos. Não se deve subestimar uma nação cambaleante que chegou à fadiga da indignação, mas ainda assim demora para dormir com a desagradável sensação de que há alguma coisa muito errada com os juízes de Berlim.