Dias depois daquele tsunami que varreu o leste da Indonésia em 2004, uma força-tarefa partiu em busca de sobreviventes nas ilhas mais distantes, algumas delas candidatas ao desaparecimento por estarem numa altitude menor. Numa dessas ilhas, com um cadastro de 1,2 mil habitantes, os prenúncios eram trágicos: havia resíduos da enxurrada devastadora até o pé da montanha. A surpresa ficou por conta da ausência de mortos. Todos tinham se recolhido para o alto da colina e de lá assistido, intactos, à onda colossal. Um velho pescador foi apresentado como herói, com seu relato original: "Ao chegar à praia no amanhecer, encontrei o mar recuado como nunca e com um cheiro muito forte de algas. Corri para a aldeia gritando para que todos se refugiassem na montanha. Felizmente todos conseguiram fugir a tempo". Quando pediram-lhe explicações, ele resumiu: "Recuar, o mar recua todos os dias, mas não com aquele jeitão de quem está indo embora. Além disso, havia aquele cheiro que eu já senti duas vezes, e até parece que o mar está revirando as tripas, e então achei que o melhor era não ficar parado para ter certeza!".
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Não há registro científico da valorização do cheiro do mar como sinal de alerta para maremotos, mas aqueles muitos anos de pele rachada pelo sol de uma vida inteira tinham ensinado alguma coisa àquele avozinho de cabeça branca e voz muito serena. E ninguém pareceu animado em questionar o quanto aquela informação era empírica. Todos se contentaram em aplaudir o milagre, porque este era verdadeiro.
A capacidade humana de arquivar a percepção dos sentidos é bem reconhecida. Nos lembramos de cidades, bairros, casas e circunstâncias pelo cheiro. Também é assim com a iminência do sexo e com a proximidade da morte, que amor e morte têm cheiro, sim, senhor.
Outras vezes, um determinado som desperta em algum lugar do cérebro uma reminiscência carinhosa ou hostil, que por desuso ou proteção, tinha sido apagada da memória. Um dos maiores prodígios da música é reconstruir instantaneamente as situações mais remotas, borradas da lembrança. Indivíduos tranquilamente acomodados, ouvindo música sem vínculo emocional, de repente, aceleram os monitores porque uma determinada canção tinha raízes de afeto tão profundas que permitiram liberar uma dose insuspeitada de adrenalina, armazenada há décadas.
Quantas das nossas recordações da casa da avó estão atreladas ao cheiro do pão saindo do forno, ao sabor da ambrosia inesquecível, ou à delicadeza dos dedos dela alisando nossos cabelos?
Mas haverá atestado maior do nosso primitivismo sensorial do que encontrarmos um par bonito, inteligente, sensível, culto, sensual, elegante, carinhoso, identificado em gostos, prazeres e disponibilidades, e a relação não prosperar porque implicamos com o gosto ou o cheiro da adorável criatura?
Curioso que tantos séculos não tenham apagado os critérios da caverna. Esses que ninguém questiona, mas todo mundo entende e consome. Sem nenhuma vontade de explicar.