A competitividade sem limites nem escrúpulos da sociedade moderna criou espaço para as chefias inflexíveis, e daí, por geração quase espontânea, surgiu a figura lamentável do torturador mental.
O personagem meio folclórico e muito cinematográfico do sargento perseguidor de recrutas inocentes se materializou em miíases de chefes de repartição, espalhados em organizações públicas e privadas, a exercer a ignóbil função de tripudiar de seus subalternos, submetendo-os a todo tipo de humilhações, só suportadas pelo pavor incomparável do desemprego. Pavor este que é a matéria-prima sobre a qual o torturador esbanja toda a sua inesgotável capacidade de renovar modelos de depreciação e desrespeito ao seu comandado.
Como o sadismo é um pré-requisito para a condição de torturador e o exercício de atrocidades que provoquem sofrimento - tônico vital para a sobrevivência do sádico -, o ciclo patológico se completa quando o carrasco encontra sua vítima, encurralada e indefesa.
Em algumas funções, como a de fiscal da Receita, agente de trânsito ou policial, essa distorção de caráter pode ser confundida com eficácia e pode passar despercebida durante algum tempo, até que seus superiores, mais inteligentes e sensíveis, se deem conta de que pisotear a dignidade dos outros não pode ser uma trilha aceitável para a competência.
Uma noite dessas, chegando a Toronto, vindo de Nova York, fui aleatoriamente selecionado, provavelmente pela cara de turco, para uma entrevista com o pessoal da imigração canadense. Nos documentos, o visto canadense, a passagem de volta e dólares em quantidade suficiente para uma temporada ociosa naquela cidade.
A inspetora da aduana, um tipo agressivo, com a feminilidade macroscópica de uma instrutora de caratê, os olhos faiscantes e os lábios finos e constritos,
como costumam ter as pessoas más (nunca vi uma maldosa beiçuda!).
A primeira pergunta:
- O que o senhor veio fazer no Canadá?.
A resposta recomendável devia ser: "Turismo". Mas eu resolvi sofisticar:
- Vim assistir a um congresso médico.
Besteira total.
- Congresso onde?
- No Centro de Convenções.
- Qual deles?
- Esse grande que fica no centro da cidade.
- Temos vários centros de convenções na cidade. E cadê a sua inscrição no congresso?
- Vou fazer no local.
E, de repente, comecei a ser tratado como um provável agente terrorista: "O senhor não está falando a verdade, o senhor não tem nenhum direito no Canadá, e fique sabendo que eu posso lhe mandar de volta para o Brasil!".
Nesta altura, um pouco cansado da viagem e com saudades da terrinha, tive a sensação aguda de que nenhuma submissão se justificaria se a recompensa fosse só o direito de passar uns dias na cidade mais gélida e mal- humorada do hemisfério norte, onde as pessoas, por terem nada que fazer, se habituaram a dormir às nove da noite.
E assim, determinado a não suportar nenhuma agressão de uma estúpida agente de imigração, resolvi afrontá-la: "Pois bem, faça isso. Expeça o mandato de deportação e eu, que sou um cirurgião conhecido aqui
no Canadá e no mundo, lhe prometo inesquecíveis
15 minutos de fama com o incidente diplomático que a senhora vai ter que explicar!".
Pronto. Toda arrogância desapareceu. O pobre carimbo suportou a raiva e eu saí daquela sala deprimente com um visto provisório de quatro meses, mesmo tendo dito que minha permanência no país seria de apenas quatro dias.
No fundo, não havia nada de errado com os documentos, e a simples consulta ao computador teria mostrado que aquela era a minha vigésima entrada no Canadá nos últimos anos.
Todo o incidente se deveu à ânsia de exercitar poder de uma infeliz criatura que necessita ser tonificada pelo prazer patológico da humilhação.
E a minha reação inesperada serviu apenas para confirmar, mais uma vez, que o sadismo e a covardia são crias da mesma ninhada. E não importa qual nasceu antes.