O episódio mais grotesco da exacerbação política atual não ocorreu em Brasília, com o cinismo de Eduardo Cunha, nem em Curitiba, onde a Lava-Jato desenterra o mórbido conluio entre empresários e políticos de diferentes partidos. Ocorreu aqui, no tristonho ato da médica pediatra que se negou a atender uma criança de 13 meses porque a mãe integra o PT como suplente de vereador em Porto Alegre.
Nem nas guerras se rejeita socorrer o inimigo. Conheci nos anos 1970 um jovem médico brasileiro que, emigrado a Israel, na Guerra do Yom Kipur fez seu helicóptero descer em pleno campo de batalha para socorrer um soldado árabe. Ferido, o inimigo se tornara um igual. Sim, pois ser médico é participar da vida dos demais como gesto de amor, sem discriminar.
Como entender, assim, que o presidente do Sindicato Médico, Paulo Argollo Mendes, tenha justificado a recusa da pediatra Maria Dolores Bressan, sob o pretexto de que nenhum médico "é obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência"?
Que afronta à consciência pode provocar um inocente absoluto de 13 meses de idade?
Nem se fosse um filho de Hitler ou de algum dos torturadores dos tempos da ditadura, haveria explicação para recusar atendimento ou socorro.
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Na semana passada, ao tratar da cega paixão política exacerbada pelo pedido de "impeachment" de Dilma, lamentei que a intolerância fanática esteja em todas as partes. O fanatismo tudo permite - frisei - e quanto mais cruel, sibilino e perverso for o horror, mais a cegueira fanática se regozija.
Referia-me aos grupelhos que, em estilo hitlerista, insultaram o ministro Teori Zavascki, junto à sua residência em Porto Alegre. Muito pior, porém, foi o ato da pediatra. E mais abrupto ainda, a defesa que dela fez o Sindicato Médico.
Tornar a intolerância uma regra, cultivar o ódio, fazer da cegueira uma forma de "ver" é uma teia que surge da mesquinhez oportunista do nosso sistema partidário. Mas não pode se incorporar ao nosso cotidiano, sob pena de suicídio coletivo da nação e do seu povo.
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E a mesquinhez anda tão à solta na política quanto a violência nas ruas.
Agora, o impacto da "crise política" é a debandada do PMDB do governo de Dilma Rousseff, após partilhar das benesses da administração por mais de cinco anos consecutivos. Quando assisti ao noticiário da TV anunciando que os "peemedebistas" deviam deixar todos os postos no governo, um jovem de 21 anos, a meu lado, com o raciocínio não contaminado pelo oportunismo, indagou:
- E o Temer? Vai renunciar à vice-presidência?
Quem votou em Temer? Ninguém! Em 2010 e em 2014 ele foi apenas mudo acompanhante da candidata presidencial. Desde 1º de janeiro de 2011 governou conjuntamente com Dilma. Hoje, é o grande articulador do impedimento da presidente. E o único beneficiário direto no caso de Dilma deixar a presidência.
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Melhor do que as análises escritas, o traço de Gilmar Fraga retratou tudo na charge em ZH, a 27 de março. Com o "capitão Gancho" à frente, um grupo de piratas, deixa a nave carregando barris, ouro e prata. Um mosquitinho pergunta de longe: "O que é isso?", e outro explica: "É o PMDB deixando o governo".
Maior agrupação no Congresso, o PMDB é o símbolo-mor do sistema partidário. Apegado ao poder, não corre riscos. Está em todas! É um aglomerado misturando corretos e indigestos, num menu para todos os gostos. Até bem pouco, estava alinhado com Dilma. Uma das raras exceções era o Rio Grande, onde só uma ativa minoria apoiava o governo.
Em 2015, quando o então ministro da Aviação Civil, Eliseu Padilha, virou coordenador político da presidente Dilma, seus correligionários da ala não-governista o chamavam depreciativamente de "Eliseu Quadrilha" e falavam dos processos que teve na Justiça. Hoje, ao virar um dos coordenadores do "impeachment", voltou ao nome de batismo...
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Na vida, como na política, o oportunismo, a mesquinhez e o cinismo levam à desfaçatez e à descrença. E daí ao fanático amor ao ódio é um pulo.
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