O bode expiatório modernizou-se. Intrometeu-se em nossa vida, enraizou-se na política e anda pela imprensa, TV e internet. Cresceu e já é muito mais do que aquele bicho (conta a Bíblia, no Levítico 16) sobre o qual os antigos hebreus atiravam seus pecados, fazendo-o culpado de tudo antes de soltá-lo no deserto nas cerimônias do Yom Kippur, o Dia do Perdão. E o bode se perdia pelo mundo, levando a maldade alheia.
Todos se tornavam felizes, sentiam-se livres dos erros e faltas, mesmo sem mudar a conduta. E, a cada ano, o gesto se repetia.
O equívoco maior em nossa relação com o mundo continua a ser o bode expiatório. Buscamos sempre quem carregue as culpas, nele descarregando nosso rancor, ódio ou até críticas sensatas. Na era moderna, Hitler fez dessa artimanha um crime nauseabundo: toda a maldade do mundo "provinha dos judeus" e havia que exterminá-los um a um, sem titubear, como hoje exterminamos o Aedes aegypti.
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Agora, o medíocre governo de Dilma Rousseff tornou-se o bode expiatório sobre o qual descarregamos a bronca e a ira acumuladas ao longo de anos. O impedimento da presidente da República toma as cores de "salvação nacional". Não percebemos que, com isto, olhamos apenas por uma minúscula fresta, sem ver a totalidade, como se, numa multidão, existisse apenas uma pessoa, não o todo.
Desde os tempos de Lula da Silva, o Brasil é governado por um condomínio que, em nome de partidos, reparte o poder em função dos interesses pessoais de seus donos. Não se buscam rumos na administração. Só interessa o que dá lucro e o que dá voto! O PT preside a República que o PMDB governa (ou governou até aqui) com o resto da base alugada.
A Operação Lava-Jato mostrou como o trio PT-PMDB-PP especializou-se na extorsão, em concubinato com grandes empresários, à sombra do poder.
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A comissão de deputados que julga o pedido de impeachment é o retrato da devastação política atual. Dos seus 65 integrantes, 35 respondem a inquéritos ou processos judiciais. O presidente, Rogério Rosso, está processado por peculato. O relator, Jovair Arantes (que enalteceu a moral ao aceitar o impeachment), responde por improbidade administrativa. Outros seis já têm condenações e oito são réus no Supremo Tribunal, onde também é réu o notório Eduardo Cunha, presidente da Câmara. E sem contar o onipresente Paulo Maluf, condenado na França por corrupção no Brasil, que já anunciou que votará pelo impeachment...
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Os partidos não têm doutrina nem se diferenciam em ideias ou ideologias. Deputados e senadores trocam de lado como se mudassem de roupa íntima após o banho, amparados em leis feitas por eles e só para eles.
Há exceções, é claro. Mas a regra é que os partidos sejam aglomerados de gente reunida em busca de poder pessoal, seja como for.
Depois de tudo o que já se sabe da bilionária corrupção comandada por PT, PMDB e PP na Petrobras, agora surgem detalhes de outros milhões desviados da construção da hidrelétrica de Belo Monte, na Amazônia. Erenice Guerra, ex-chefe da Casa Civil e próxima à presidente, aparece no núcleo da nova fraude bilionária, com o que - pela primeira vez - o vento tempestuoso roça Dilma Rousseff.
Dos bilhões desviados (no mínimo 160 milhões de dólares), um terço ia para o PT e dois terços para o PMDB, com o que o vice Michel Temer entra diretamente no baile.
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A estrutura partidária é que está corroída e, assim, corrói toda a sociedade. Dilma e o PT são apenas bodes expiatórios num sistema que, nestes anos de redemocratização, não evoluiu. Até hoje, a política comporta-se como nos tempos da ditadura direitista - havia eleições para simular democracia, com dois partidos (um do "sim", outro do "não") para simular liberdade de opinião.
Agora, de novo, temos dois partidos - a favor ou contra o impeachment. E nos preparamos para despejar no bode tudo o que alguns têm na garganta, como nojo, e outros na consciência, como culpa.
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