A nomeação de Lula da Silva à chefia da Casa Civil me faz pensar nos suicídios a esmo, gerados pela fantasia.
O suicídio é, sempre, um gesto em defesa da dignidade e da honra. Getúlio suicidou-se assim em 24 de agosto de 1954. Atirou seu cadáver contra os que queriam matá-lo em vida como presidente da República. Um cadáver pesa mais do que a vida e impediu, assim, um golpe de Estado direitista. E a carta-testamento que deixou segue vigente como denúncia da mesquinhez dominante na política.
Agora, 62 anos depois, a presidente Dilma inventa um suicídio de novo tipo. Dá um tiro no próprio pé e provoca uma hemorragia política profunda ao nomear o ex-presidente para a Casa Civil.
Faz dele um salvador quando, de fato, Lula é o foco das discórdias. Ou núcleo das desconfianças, dúvidas e suspeitas sobre retidão, honestidade ou ideais, desde os tempos de dirigente sindical, não só nos anos presidenciais.
***
Lula é um afortunado. Hábil e inteligente, o raciocínio rápido disfarça a ignorância crassa com que é capaz de nos seduzir. Quando presidente, todos tinham uma explicação para absolvê-lo dos absurdos que dizia: "É um operário, vem de baixo, mostra como o povo pode ascender...".
Quem ascendeu, de fato, foi o lucro dos bancos, além do capitalismo-corrupto baseado no conluio entre grandes empresas, governo e partidos da base alugada, como o PMDB e o PP, além do PT.
O próprio Lula se gabava: "Nunca os bancos lucraram tanto quanto em meu governo", dizia dando bolsas de R$ 100 ao povão. E os bancos se deliciaram nos créditos para financiar carros a R$ 300 ao mês. Ou compras em 12 ou 36 meses, quanto mais vezes melhor.
***
Em 2005, salvou-se no "mensalão" porque José Dirceu renunciou à Casa Civil e assumiu o que era do presidente.
Lula "não sabia de nada" e Dilma Rousseff, como "gerente geral", reconstruiu a imagem presidencial. Em 2010, agradecido, Lula a impõe como candidata do PT e leva junto Michel Temer e o PMDB. Lula a elegeu, mas na troca de favores ele ainda devia a ela. Naqueles anos, elogiado pelas grandes empresas e pelos ricos, admirado pelos pobres da "bolsa família", Lula era chamado de "estadista" pela imprensa, palestrava por 200 mil dólares e recebia títulos de "doutor honoris causa" a granel. Virou "doutor" até por Coimbra...
O país tinha mudado. Tudo vinha "de cima". Os movimentos sociais e os sindicatos perderam poder.
O "men$alão" engoliu o$ partido$, já esquálidos e sem doutrina. Ser oposição ou governo virou aposta adornada com verba pública. O assalto à Petrobras vinha da era PSDB (como mostra o senador Delcídio) e se agigantou: Lula deu o comando ao PP de Paulo Maluf e ao PMDB, que melhor sabiam de suborno.
***
Nos tempos de FHC, a luta do PT impediu a legalização dos transgênicos, mas Lula abriu as portas à Monsanto e outros grupos, mesmo com as advertências de João Paulo II. Nenhum ministro da Educação resistiu e o ensino superior privado ficou, cada dia mais, em mãos de grupos mercantis estrangeiros com cotação na Bolsa e em busca de lucro, não de educadores.
Como presidente, Lula foi excelente "relações públicas". A administração ficou com José Dirceu ou com Dilma. Ele representava. Ator insuperável, fez diferentes papéis sem violência e sem descumprir a lei. Tudo na lábia.
Líder sindical nos tempos da ditadura, teve duplo papel. Lutou por salários e pelo direito de greve. E agora aparece como informante do DOPS, a temida polícia política paulista, que prendia, torturava e matava com total impunidade. No poder, recompensou a família do seu protetor, o chefe do DOPS, Romeu Tuma, e deu a seu filho Tuma Júnior o posto de Secretário Nacional de Justiça.
***
Talvez este teatro perene quebre a serenidade, hoje mais necessária do que nunca. Até o juiz Sérgio Moro (que encarna a visão de Justiça) envolveu-se pela bronca ao ver Lula fugir de sua alçada e difundiu uma conversa grampeada de Dilma e dele, que nada tinha de anormal mas criava a sensação de conluio e crime entre ambos.
Exorbitou. E o suicídio geral é isto - perder a serenidade, ir além do real.
Leia outras colunas em
zhora.co/ FlavioTavares