A naturalidade com que um absurdo passa ao cotidiano como se fosse algo normal torna-se, às vezes, assustador. Passamos décadas (ou séculos) sem acreditar na Justiça e nos órgãos judiciais e sem nos animar a protestar. Compensávamos o absurdo com uma ideia cinicamente piedosa aprendida ainda na infância, repetida como consolo: "Confiemos na Justiça Divina, que não falha jamais!".
Nos últimos anos, tudo começou a mudar. A progressiva autonomia do Ministério Público (principalmente na área federal) e o destemor e independência moral dos juízes nos fizeram chegar, por exemplo, à Operação Lava-Jato e ao assalto bilionário à Petrobras.
Pela primeira vez na História, grandes nomes da oligarquia empresarial e política receberam sentenças condenatórias, cumprem penas ou estão denunciados. Enfim, pode-se confiar na Justiça dos homens. Já não é preciso aguardar, misticamente, o dedo de Deus.
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A equipe do procurador-geral Rodrigo Janot, por um lado, e o juiz Sergio Moro, por outro, passaram a ser a representação da esperança. Hoje, a expectativa do país se concentra em Curitiba, onde tudo começou por acaso, a partir de uma tramoia aparentemente pequena, que levou a desvendar o que se encobriu durante dezenas de anos, ao longo de diferentes governos.
Todos sabiam, intuíam ou desconfiavam de que o dinheiro público era tratado como tesouro de uns poucos num círculo ínfimo de privilegiados. A condenação de empresários e dos marginais que os serviam (como doleiros e outros) revela, porém, muito mais do que isto. O assalto à Petrobras (e suas extensões à Nuclebras e outras "bras") foi planejado por três partidos políticos - PT, PMDB e PP - como ação de governo. O comando geral ficou com o PP, nas mãos de Paulo Roberto Costa, talvez pela razão óbvia de que o partido malufista manejava melhor do que ninguém a tecnologia superior de assalto praticada pelo próprio Maluf em São Paulo.
Lembram-se quando, décadas atrás, "malufar" virou verbo com o sentido de roubar?
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Planificar e executar o roubo em associação com o alto empresariado passou a ser ato normal da administração governamental! Jamais o crime tivera um fortim tão pujante - políticos, altos burocratas, grandes empresários, todos reunidos.
A cobiça do roubo milionário apagou as diferenciações políticas. O PT, que se dizia de "esquerda", diluiu-se na mesma água do PP, que se dizia de "direita", para coroar o PMDB, que há muito não é de nada (muito antes pelo contrário...), e, assim, distribuir aos partidos nanicos as migalhas do banquete.
Mas não se pense que o PSDB ficou longe do butim. Pelo que conta o senador Delcídio Amaral, até o senador Aécio Neves (que comanda a furiosa oposição do PSDB) serviu-se da sobremesa. Delcídio é um delator experiente. Foi diretor da Petrobras quando pertencia ao PSDB, na presidência de Fernando Henrique. Eleito senador pelo PT, tornou-se um dos confidentes do então presidente Lula da Silva. Ao ser desmascarado meses atrás, era líder do governo Dilma no Senado e, assim, continuava opinando na Petrobras.
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A condenação, agora, de Marcelo Odebrecht e de outros grandes capitães do empresariado antes dele e o processamento de dezenas de políticos (Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados, é um deles) conferem ao juiz Sergio Moro e aos procuradores federais uma respeitabilidade que não deve ser arranhada em nada.
Por isto, chama a atenção que o juiz tenha escorregado numa casca de banana ao mandar que o ex-presidente Lula da Silva fosse depor sob vara, levado à força como um marginal sem paradeiro, sob escolta da Polícia Federal. Com isso, se arranha a lisura do mais importante caso penal da nossa história e, igualmente, se abre a porta para transformar o ex-presidente em vítima da arbitrariedade.
Nem esse erro perigosamente tolo, porém, tira da Lava-Jato a característica de algo essencial que muda o rosto do país e nos leva a crer na Justiça humana, não só no dedo de Deus.
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