A heroína vicia mais do que a cocaína, a maconha e as anfetaminas; só perde para a nicotina. As primeiras doses deixam um bem-estar desconhecido, profundo e duradouro, sensação cada vez mais fugaz à medida que se instala a tolerância causada pelo uso repetitivo.
No Brasil, o custo desse derivado do ópio faz com que o número de usuários seja restrito, comparado com o dos dependentes de crack/cocaína. Na Europa, são centenas de milhares; na América do Norte,, somam mais de 1 milhão, contingente trágico que desintegra famílias e comunidades e contribui para a disseminação da aids, das hepatites virais e da criminalidade.
Historicamente, o tratamento da dependência de heroína seguiu duas estratégias opostas.
Adotado em torno de 1920, o modelo britânico preconizava a prescrição da droga para os usuários de classe média que se dispusessem a seguir orientação médica, método que permaneceu em vigor até os anos 1960.
O modelo norte-americano, ao contrário, seguiu o Harrison Narcotics Act, promulgado em 1914, que ameaçava de processo judicial todo médico que prescrevesse a droga.
Abordagens antagônicas como essas nada tinham a ver com as propriedades farmacológicas da heroína, nem com a busca de evidências para encontrar a forma mais eficaz de livrar-se dela, refletiam apenas a postura de cada sociedade em relação ao consumo de drogas ilícitas.
Vieram os anos 1960 e o dilema foi resolvido graças a um trabalho conduzido em Nova York que propunha o uso da metadona, um derivado da morfina, para tratar os usuários. A estratégia consistia em trocar a dependência de uma droga ilícita por outra, produzida pela indústria farmacêutica. A figura do traficante substituída pela do médico; em vez do dinheiro para a compra nas ruas, a receita gratuita aviada nos postos de atendimento público.
Programas de metadona por via oral se disseminaram pelo mundo. Na Inglaterra, substituíram os de prescrição de heroína, porque a classe médica considerou que finalmente havia uma opção terapêutica mais respeitável do que receitar uma droga ilícita para os usuários dela.
Mais uma vez, os interesses profissionais e políticos se sobrepunham às evidências científicas baseadas em análises racionais.
A metadona teve dois méritos: colocou os dependentes em contato com o sistema de saúde e demonstrou ser capaz de diminuir os riscos do abuso de heroína, entre aqueles decididos a mudar de vida. Cerca de 15% a 25% dos usuários inscritos nesses programas, entretanto, abandonam o acompanhamento e voltam a injetar o opioide ilícito.
Pesquisadores canadenses publicaram um estudo no qual 226 usuários crônicos de heroína (caracterizados pelo uso diário, por mais de cinco anos), que já tinham feito pelo menos duas tentativas fracassadas de tratamento com metadona, foram divididos em dois grupos: metade recebeu metadona novamente; os demais receberam injeções diárias de diacetilmorfina, o componente ativo da heroína.
Depois de 12 meses, 46% daqueles que tomaram metadona e apenas 12% dos que receberam diacetilmorfina tinham abandonado o estudo. Os índices de retorno à heroína e de envolvimento em outras atividades ilegais foram de 52% e de 32%, respectivamente.
Entre os 115 pacientes medicados com diacetilmorfina, ocorreram 11 crises de convulsão ou de overdose. Como as injeções foram administradas em ambulatórios médicos, nenhum dos casos resultou em morte. Não houve episódios de overdose entre os que tomaram metadona.
Esses resultados confirmam aqueles obtidos em estudos realizados na Holanda, na Espanha, na Alemanha e na Suíça, país com mais de 10 anos de experiência com a prescrição de heroína, programa que recebeu 68% dos votos.
A conclusão dos autores é a de que metadona ainda é o medicamento de escolha, mas que o subgrupo resistente a ela pode se beneficiar da injeção do componente ativo da heroína, como alternativa ao abandono de tratamento e à perda de contato com o sistema de saúde.